sábado, janeiro 30, 2010

Dream Black

Prologo - Ultima Parte


O carro parou num beco de uma rua com pouca luminosidade, o único foco de luz era um candeeiro que iluminava uma loja de antiguidades mesmo ao virar da esquina. Enquanto o resto da rua também tinha dos mesmo candeeiros, curiosamente esses pareciam não ter tanta luz como aquele especifico. Ao acabar de estacionar ambas saíram imediatamente do carro, a Mariana confirmou se tinha ficado bem fechado e ao erguer-se ela reparou que a rapariga que tinha salvado não tirava o seu olhar dela. Já não chorava nem parecia assustada, poderia ser o lýkos a fortalecer-se seu corpo, mas era pouco provável, não sentia agressividade vinda dela e o seu olhar era mais curioso do que predatório e esse era um tipo de olhar que não agradava à Mariana vindo de quem fosse, especialmente de um humano. Elas entreolharam-se por escassos segundos antes da rapariga, atrapalhadamente, acabar por desviar o olhar. Isso não demoveu Mariana, a rapariga estava curiosa em relação a algo e era melhor expor já a dúvida antes que algo acontecesse.

- O que foi? – Perguntou a Mariana

- Nada… Nada.

- Eu consigo ver que tens uma questão, mas não tenho premonição ou clarividência para saber o que é, portanto agradecia que dissesses o que te vai pela cabeça. – Inquiriu Mariana deslocando-se para a saída do beco.

A rapariga seguiu-a rapidamente, com a cabeça baixa, como se tivesse dificuldade em encara-la outra vez.

- Estou à espera. – Continuou Mariana.

- É que… – Disse a rapariga com dificuldade.

- Que?... – Questionou Mariana já ficando impaciente.

- Eu não sei o que está a acontecer – Lamentou-se, lutando para conter as lágrimas. - Eu não sei quem és tu… e já vi a minha dose de coisas estranhas hoje… abandonei o Tiago e agora levas-me para não sei onde e…

Houve um grave silêncio entre as duas, a Mariana parou e ficou a olhar para ela com um ar severo fazendo a rapariga parar a respiração por uns instantes e engolir a seco.

- É que tu. – Ela parou outra vez respirando fundo. – Os teus braços...

A Mariana conteve uma gargalhada levando a mão à cara. Sempre que trazia alguém para dentro da Ilusão a questão era sempre a mesma e a reacção também vagamente mudava à resposta. Este acto já se tinha tornado uma rotina no “recrutamento” para a Ilusão e a Mariana já exigia pouco esforço de si própria para lidar com a situação.

- Não irias entender. Talvez depois desta noite o faças.

- O que se passa? Para onde me levas? – Perguntou a rapariga agora num tom mais sério e algo perdido.

- Para aquele antiquário que passamos. – Respondeu a Mariana.

- E o que há lá?

- Espera e vês. Não sejas impaciente e não sejas chata.

Ao dizer isso a Mariana continuou a caminhada pela rua, obrigando a rapariga a correr um pouco para alcança-la e continuar a questionar:

- O que é que se passa comigo? O que é que vocês querem comigo?

- A sério, eu não sou a melhor pessoa para falar disto. Portanto podes te calar.

- Então quem é? – Questionou a rapariga quase num lamurio.

- O Xavier. É quem tu vais conhecer agora.

A rapariga parou por um bocado deixando Mariana ganhar algum avanço, havia uma miríade de questões na sua cabeça e a pessoa que ela pensava poder responder afastava-se delas, ela estava a ficar frustrada e irritada. Cada vez mais o medo começava a afastar-se dela, não é que não o sentisse, apenas, o seu corpo recusava-se a aceita-lo.

Eventualmente chegaram à casa de antiguidades. O candeeiro à sua entrada dava-lhe um brilho pouco natural. Debaixo do candeeiro todos os outros edifícios pareciam cinzentos e mortos, no entanto a pequena casa sob o seu brilho tinha um efeito hipnoticamente convidativo.

A Mariana empurrou a porta com um braço deixando-a aberta para a rapariga passar. Em seguida fechou a porta atrás de si. Entraram para um local bastante iluminado, para alem dos vários candeeiros espalhados pela sala, uma lareira crepitava numa das paredes e uma vela iluminava uma figura num balcão. O espaço da pequena loja estava cheio de estantes que formavam um pequeno corredor por onde as duas raparigas passaram até chegar ao seu destino, nessas estantes estavam vários objectos alguns comuns, outros um pouco mais invulgares e ainda uns selectos que eram ocultados pela Ilusão devido ao seu carácter não natural. No balcão, estava um velho que silenciosamente concertava um relógio de bolso. Tinha óculos grossos, uma longa barba grisalha e uma estatura bastante reduzida.

Quando a Mariana aproximou-se do balcão, a atenção do homem focou-se nela com um largo sorriso e uma calorosa saudação:

- Bem-vinda de volta ao meu santuário Mariana.

- Venho em trabalho Xavier, não há tempo para confraternização.

- Disparates rapariga, conta-me tudo. Já agora, como está a Cecile? – Questionou olhando para a rapariga que tinha entrado com Mariana.

- Da última vez que a vi andava entretida com as suas poções, mas também, já não à vejo há meses.

- Típico de ti. Pegas numa pessoa e depois larga-la num mundo desconhecido sem qualquer preocupação.

- Tu sabes que os humanos aborrecem-me Xavier, envoltos nas suas loucuras e no seu ego, fazem tudo menos olhar para o que fazem aos outros. – Mariana desviou o olhar e fixou o tecto. – Não têm qualquer consideração pelos outros, sejam da sua raça ou não, quanto mais vontade de ajudar… porque teria eu essa consideração por elas?

- Ai Mariana, Mariana. – Desaprovou o Xavier abanando a cabeça - Diz-me, quem é essa que trazes contigo? Também a vais deixar abandonada neste mundo.

A rapariga foi ficando cada vez mais nervosa com a conversa, mas não se demoveu, continuava estática no seu lugar com os olhos balançando tremulamente entre os outros dois seres e a lareira.

- Ela não está assim tão mal, apenas foi infectada pelo lýkos achas que pode ser curada?

- Foi infectada? Como foi infectada? O Ghar não devia estar a tomar conta dos seus pupilos?

- Devia mas não tomou conta deste. Estava solto e louco. Tive de o abater.

- Isso é interessante. – Disse para si próprio acariciando a sua barba farfalhuda. – Temos de falar com o licantropo. Ele tem de ser feito responsável. No entanto, esta menina terá de ser introduzida na Ilusão. Coitadinha, aposto que nem sabes o nome dela.

O Xavier levantou-se e caminhou lentamente para perto da rapariga. Ele era baixo, tinha bastantes rugas, uma corcunda acentuada e coxeava ligeiramente. Fez-lhe uma vénia e pediu-lhe pela mão com um gesto educado. Temerosa a rapariga entregou-lhe a mão que ele gentilmente beijou como um cavalheiro. Em seguida colocou a outra mão sobre a sua.

- Diz-me, como te chamas?

- Raquel. – Respondeu a rapariga imediatamente, mostrando-se extremamente desconfortável.

- Ora bem Raquel, acho que precisamos de falar. Mariana, podias esperar lá fora enquanto eu falo aqui com a nossa amiga.

A Mariana deslocou-se para a rua sem responder. Fechou a porta atrás de si acabando por ver Xavier a puxar uma cadeira para a Raquel se sentar. Encostou-se ao lado da porta e tirou um cigarro. Ao acender o isqueiro ficou a olhar para a chama. O brilho no meio da noite punha-a a ter pensamentos de outros tempos, em que nada disto era real para ela, em que não passava de outra criatura amada pelos pais e ignorante às maquinações do mundo. Ela riu-se para si própria e tirou os pensamentos da sua cabeça. Era parvo tê-los, especialmente porque lhe percorriam pela cabeça sempre que levava alguém a ser iniciado.

O tempo passou lentamente e o cigarro acabou rapidamente. A noite estava fria e pouco acolhedora. O casaco que ela tinha vestido não lhe favorecia muito a estadia na rua, mas era melhor que estar lá dentro. Quando um humano era iniciado na Ilusão as coisas podiam ser complicadas. Já tinha assistido a bastantes iniciações para entender que nem sempre as coisas corriam bem, apenas duas tinham sido aceites sem problemas mas de resto tinham sido, algo complicadas.

Durante a espera a Mariana conseguiu ouvir os gritos exasperados da rapariga que, certamente, não acreditando no que lhe era contado reagia à situação de forma pouco controlada. Felizmente o Xavier tinha prática e uma maneira muito peculiar de falar com as pessoas, convence-las e faze-las entender a sua situação. Era um facto bem conhecido que apesar da sua aparência, Xavier não era humano, era um dos antigos e há séculos que fazia o mesmo discurso de iniciação a todos aqueles que faziam parte da Ilusão. Nascidos nela ou aqueles mais tarde inseridos nela, acabavam todos por ser levados à presença de Xavier ou um dos outros anciões.

Ao completar os seus dezasseis anos, Mariana, como muitos outros antes dela, foi levada à presença de Xavier. Foi-lhe explicado o mundo em que ela existia, as politicas e as facções ocultadas toda a sua vida pelos seus pais. A partir desse dia a sua inocência quebrou e ela viu-se envolta numa teia de acontecimentos que parecia ter-se enrolado completamente em torno da sua vida muito antes de ela ter nascido.

Após a sessão de introdução, a Mariana foi chamada de volta para dentro da casa. Quando passou o limiar da porta, reparou que a rapariga olhava para ela com uma expressão assustada. Certamente já teria sido marcada e o véu da Ilusão levantado dos seus olhos, podendo ver o verdadeiro aspecto de Mariana. Ela avançou até Xavier e sorriu para a rapariga dizendo:

- Isto não é a coisa mais estranha que vais ver, eu asseguro-te.

A rapariga manteve-se imóvel no seu lugar, com o olhar brilhante e assustado a seguir a Mariana.

- Isto já está tratado, o resto estará nas mãos de Ghar. – Anunciou Xavier pegando no relógio em que estava a trabalhar. – Estamos em tempos negros Mariana.

- Não precisas me o dizer Xavier. As purgas dos vampiros têm aumentado.

- Sempre houve desdém das gerações antigas em relação ao sangue novo, mas nunca com esta envergadura. – Explicou Xavier levando uma mão à testa. – Os loucos dos Corvos estão a ganhar mais influencia e…

Xavier fechou os olhos e colocou o relógio no balcão directamente em frente de Mariana. O relógio tinha o seu ponteiro das horas nas sete e o ponteiro dos segundos ao invés de avançar, retrocedia a uma velocidade irregular.

- Quando for doze horas nesse relógio volta aqui, temos uma missão para ti.

A Mariana soltou uma grande gargalhada, pegou no relógio e animada perguntou ao ancião:

- Tu já sabias que eu vinha, não sabias?

- Precisamos que tragas mais uma criatura humana para a Ilusão, mas esta desta vais ser sua protectora.

- Xavier! Tu sabes que eu nunca me ofereci, nem nunca quis ser protectora, tu sabes disso. – Protestou.

- Não há discussões aqui Mariana. Não foi uma ordem qualquer vinda dos superiores. A tua mãe é que teve a visão e pediu-me pessoalmente para te informar.

Suspirando de resignação, a rapariga meteu o relógio no bolso e olhou para a outra figura que tinha entrado com ela naquele lugar. Muito possivelmente, na noite anterior, teria tido uma existência normal e agora estava ali sentada, aterrada, com uma miríade de dúvidas a correr-lhe pela mente, confusa sobre o que era real e o que não era. E agora iria passar pela provação de Ghar, assim como iria aprender a viver como uma licantropa. Talvez mais tarde ela se habituasse a esta vida. O surreal se tornasse normal e o desconhecido tornasse-se amigável. Mas agora o medo, a descrença e as dúvidas toldavam-lhe a mente, pois assim era a entrada de um humano para a existência conhecida como o Outro Lado.