sexta-feira, abril 22, 2011

Os Nefastos

Parte 3

Parte 2

Parte 1

Cheguei a casa mas não tinha a noção de como o tinha feito. Tentei recordar-me do caminho que percorri até aqui mas, entre o meu colapso mental no cemitério e o meu despertar quando cheguei a casa, não me recordava de nada para além de esgares de medo e desprezo de criaturas que eu não conhecia. Fui à casa-de-banho, enchi o lavatório com água e enfiei a minha cabeça lá debaixo. Soltei um grito e vi as bolhas de ar a sair da minha boca e a fazerem o seu caminho para a tona da água. Olhei-me ao espelho e ri-me quando vi a maquilhagem borrada e a ser escorrida para fora da minha cara pela água, parecia um palhaço triste que tinha acordado numa poça de lama. Limpei-me, de seguida lancei-me contra o sofá e fechei os olhos e entreguei-me novamente ao mundo dos sonhos.

Fui imediatamente transportada para uma floresta no mais negro breu debilmente quebrado por uma lua prateada que se erguia acima da minha cabeça. Através dos ramos despidos das árvores a luz fugaz iluminava debilmente o chão da floresta. Perto de mim havia um lago para onde eu prontamente me desloquei sob o leve som de um rachar de ramos por baixo dos meus pés. Lavei a cara na água fresca e nas ondas criadas pela minha intrusão consegui ver a sua superfície a espelhar o meu reflexo. Torci o nariz ao verificar que tinha sido enfiada num vestido branco, que não pecava por falta de elaboração. Quase parecia uma princesa, apesar do corte de cabelo à maria-rapaz não me favorecer nada.

Balancei-me gentilmente enquanto me observava na tona da água, tentando ficar acostumada ao meu aspecto. Um uivo surgiu do longe e eu quedei-me a olhar para a escuridão. Este sonho não era claramente o meu, disso já tinha chegado à conclusão, o que me fazia questionar o que raio estaria aqui a fazer.

Não tinha vantagem nenhuma em ficar parada portanto decidi explorar este plano de existência. Conforme caminhei por este plano de sonho consegui distinguir algo estranho no ar, havia um cheiro adocicado que eu recordava de um tempo longínquo, as formas das árvores eram todas muito semelhantes e estavam todas mortas, até o caminho parecia não mudar muito, o que fazia-me acreditar que estava longe do criador do sonho.

Continuei pelo que pareceu ser horas a andar à roda, o plano dos sonhos consegue ser assim chato quando éramos apenas um convidado, no entanto acabei por andar o suficiente para algo mudar. Perante mim surgiu uma pequena clareira com uma casa de madeira no meio, das janelas surgia uma luz trémula e fraca, e pouco depois da porta encontrava-se um pequeno quintal.

Um som estridente ecoou por cima de mim e ao olhar vi um mocho, com os seus grandes olhos amarelos fixos em mim. O mocho agitou-se e soltou outro grande piar antes de começar a articular palavras.

- Eu conheço a tua cara.

- Ora eu não conheço a tua. – Respondi em tom trocista. – Talvez porque não tenha muitos amigos com penas, ou porque para mim vocês são todos iguais.

- Ah, esse sarcasmo insolente. Agora estou a ver quem és criatura. Isso explica a inabilidade de conseguires libertar-te da tua forma. Vocês humanos são tão fugazes.

- Kendra, suponho? – Indaguei tendo a noção da criatura com quem trocava palavras. – Quem mais para ter tal desdém pela raça humana. Mas entendo, seu tivesse o teu corpo também quereria ver-me livre dele.

Ela piou outra vez, rodou a cabeça para a cabana no meio da floresta e falou como se eu não tivesse dito nada.

- Este não é um sonho perturbado. Não há emoções descontroladas. É desagradavelmente insípido.

- Então, não há nada de interessante para fazer? – Soltei um suspiro. – Também nem sei o que estou aqui a fazer.

- Quem sabe… – Continuou a mulher mocho mudando o tom da sua voz mostrando um pingo de ansiedade. – Talvez estejas aqui para causar discórdia. Sim! Tu vais causar discórdia!

- Não obrigada. – Desculpei-me com um ar aborrecido. – Não estou para alimentar-te. É demasiado perturbador, até para mim. Para além do mais, a Guelika pode ficar com ciúmes.

- O teu humor é desperdiçado aqui. Se não o queres fazer, senta-te num canto e desaparece.

Depois disso ela piou, esvoaçando por cima de mim e desapareceu na floresta. Mas ela precisava de se alimentar, se estava aqui era porque o dono deste sonho estaria por perto e sendo assim, ela também não se afastaria da zona.

Avancei com cuidado, não sabendo o que me esperava e tentando não perturbar nada, reparei que toda esta zona estava detalhada com muito mais cuidado. Desde os diferentes troncos que compunham a cabana, até uma marca cravada de um dos seus lados. No que parecia ser o pequeno quintal estava uma campa com uma cruz de madeira. Ainda estava afectada pela minha visita ao cemitério e não me atrevi a olhar com atenção. Gentilmente abri a porta da cabana e deparei-me com um homem debruçado sobre uma lareira quase apagada. Entrei silenciosamente e senti o suave e frio toque da madeira na planta dos meus pés, apercebendo-me assim que não tinha nada calçado. Soltei um suspiro frustrado enquanto os meus pés tentaram habituar-se à sensação, suspiro esse que chamou a atenção do homem.

- És tu! Vistes buscar-me, não é? – Perguntou com os olhos assustados.

- Acho que não fazes uma real ideia de quem sou. - Respondi algo curiosa para saber o que se passava por aquela cabeça.

- És a morte! E finalmente vieste buscar-me. – Explicou assustado

- Filho da puta do carma. Passas uns tempos em serviço público e ficas marcada para sempre. – Sussurrei levando a mão à testa. De seguida recompus-me, estiquei os braços e falei num tom assertivo. – Eu pareço-te com a morte? Diz-me, o que vez à tua frente?

- A mor…

- Juro-te… - Interrompi. – … Se dizes a morte outra vez, eu agarro-te numa parte muito frágil do teu corpo e torço-a para além da utilidade. – Levei um dedo à boca como se pedisse silêncio e falei mais uma vez com a voz arrepiantemente calma. – Mesmo que sejas masoquista, eu juro-te, não vais gostar. E agora, mais uma vez, o que sou eu?

- Uma mulher. – O homem respondeu com uma voz trémula.

- Boa. Já temos género definindo, que mais?

- Estás vestida de branco. – A sua voz acalmou e tornou-se mais fluida. – Descalça e com um ar de Maria-rapaz.

- A serio? Nem vestidos me safam. – Queixei-me. É por isso que nunca os uso.

- Mas estás a usar uma agora.

- és perspicaz. Mas também tenho de admitir que estou algo preplexa em relação a esta escolha. Não me queres iluminar sobre isso?

- Porquê eu?

- Porque… - Custou-me a responder entendendo que ele não estava ciente desta realidade. – O que é que estás aqui a fazer?

- Estou à espera da minha mulher. – Disse-me com um brilho melancólico nos olhos, voltando a sua atenção para a pequena chama a crepitar no meio das brasas. – Ela deve estar a chegar a qualquer momento.

- Ah… - Suspirei deixando-me ficar parva a olhar para o homem por um bocado. Mas eventualmente juntei “um mais um”. – Ela… não vem pois não?

- Vem sim! – Respondeu-me ríspida e abrasivamente com angustia a formar-se na cara.

- Ela está morta, não está? Dai a campa lá fora.

- Não, mentes! – Gritou com lágrimas nos olhos. Então das suas mãos começou a pingar sangue como se chagas tivessem formado. Dessa aparição tirei outra conclusão e um sorrizo sádico formou-se no meu rosto.

- Tu tens sangue nas tuas mãos. Diz-me, foste tu próprio que a mataste.

- Não! Não fiz nada. Cala-te! – Gritou comigo com lágrimas de sangue a escorrer-lhe pela face.

- Sim, sim. Muito dramático. Mas isso não muda nada do que aconteceu. – O meu sorrizo não murchou enquanto continuava a atacar o homem, senti-me a crescer e vi as minhas roupas a serem tingidas de vermelho. – Ela gritou? Ou chorou? Ou melhor, ela ainda te assombra?

- Cala-te! – Gritou outra vez laçando-se contra mim em fúria. Felizmente, eu já tinha aprendido uns truques neste plano e consegui rapidamente desaparecer de onde estava e reaparecer atrás dele.

- Estavas à procura da tua próxima vitima? Lamento mas eu não vou abaixo facilmente.

- Seu demónio! Porque me atormentas? – Questionou bruscamente. E sem me dando tempo para responder abandonou a casa.

Suspirei e segui-o. Fui-me deparar com ele debruçado sobra a campa da sua amada e cavando freneticamente com as mãos ensanguentadas, enquanto por cima de nós um mocho branco circulava, piando extasiado como se fosse um riso ecoando pela noite. Suspirei outra vez, verificando que tinha acabado por fazer o que a Kendra queria.

Resoluta em acabar com isto, movimentei-me para o golpe de misericórdia. Quando o homem desenterrou a mão da sua amada e beijava-a loucamente eu já estava ao seu lado porta para acabar com isto. Com a maior força que consegui pontapeei-o no estômago gritando.

- Isto é um sonho, palhaço!

Assim que a minha frase acabou, todos os sons quebraram. A luz invadiu-me os olhos e numa questão de segundos voltei ao mundo real. Inspirei sofregamente como se fosse um bebé a dar o primeiro choro enquanto os meus olhos reajustavam-se a este mundo.

Acordada e algo perturbada com o brusco acordar, questionei-me incessantemente.

O que raio estava eu a fazer no sonho daquele homem?

quarta-feira, abril 06, 2011

Os Nefastos

Parte 2

Parte 1

Acordei. Os meus olhos não demoraram muito a habituar-se à escuridão. Ainda devia ser cedo, visto que a Guelika continuava a dormir e ela era mulher de se levantar com as galinhas. Ergui-me da cama, mas mantive-me perto dela. Passei-lhe a mão pelos seus cabelos castanhos enquanto lembrei-me do sonho que tinha tido. Lembrei-me da última vez que tinha estado com a Nadja e da maneira que nos separamos. A mesma angustia que tinha sofrido no nosso último encontro começou a apossar-se de mim outra vez, mas quando o desconforto ameaçava apossar-se totalmente de mim e o meu pensamento começava a tomar a forma de abandono daquele local a Guelika estremeceu, virou-se na minha direcção e abriu os olhos ainda sonolentos. Ela não sorriu nem falou, apenas cravou em mim aqueles olhos penetrantes e como se perscrutasse a minha alma questionou:


- O que se passa?

- Tive um sonho. – Respondi, sentindo como se algo me sufocasse.

- Foi Ele? – Interrogou-me com os olhos franzidos e uma faísca de raiva dentro deles.

- Não… Pelo menos eu acho que não. Sonhei com a Nadja.


A sua cara mudou, a raiva transformou-se em pena e tristeza. Odiei-a por sentir pena de mim.


- Não me olhes assim! Não sou nenhum bebé que precises de amamentar. – Cuspi.

- Passaram-se dois anos! Dois! E tu ainda reages assim? – Gritou continuando com um semblante triste.

- Podiam ter sido vinte anos! Nunca me vou perdoar por o que fiz.

- Não tiveste escolha! – Tentou argumentar mas as palavras morreram na sua garganta quando o quarto pareceu-se iluminar. – Desculpa.

Não me apeteceu falar. Abracei-a e fiz-lhe o favor. Trocamos um beijo demorado e depois estreitei o abraço. Passado um pouco expliquei-lhe o sonho, que ela ouviu com atenção sem uma única vez atrever-se a conjecturar sobre o seu significado, depois falamos de coisas sem interesse, do passado e do futuro e a minha mente pareceu aliviar. Nunca sabia se era um efeito natural que a Guelika tinha sobre mim ou se fazia parte das suas bruxarias a serenidade que ela me podia oferecer apenas falando comigo.

Decidimos que o nosso momento de serenidade tinha de acabar. Ela precisava de tratar dos assuntos do bar e eu precisava de ir visitar a Nadja, ainda que lhe tivesse ocultado que o ia fazer. Descemos e deparamo-nos com o seu empregado, um homem alto de pele escura e face carrancuda. Normalmente um homem de mau humor e que me parecia não gostar muito de mim.


- Bom dia. – Cumprimentou ele secamente.

- Bom dia sorridente. – Trocei eu com um sorriso de orelha a orelha. – Aw, tu ai a carregares essas grades de cerveja pareces um ursinho adorável a trabalhar.

- Cuidado do que falas, ainda vais acabar por ter de engolir algumas palavras. – Respondeu ele calmamente mas com a sua tão afamada voz dura.

- No dia em que eu tiver de engolir palavras, eu juro que vais engolir os teus próprios dentes. – Repliquei rapidamente e ainda com o mesmo sorriso na cara.

- Silencio! Ambos. – Gritou a Guelika depois apontou para mim. – Vai-te embora, agora preciso de trabalhar e não quero que estejas a interferir com os meus empregados.


Anui e abandonei o edifício. Quando cheguei à rua as nuvens ainda estavam carregadas e cobriam o céu, deixando o sol brilhar apenas por pequenos rasgos. Eu soube nesse instante que não voltaria a casa sem antes me encontrar outra vez ensopada pela chuva e não seria por falta de velocidade. Não fui directamente para casa. Antes disso passei pelo café da senhora Matilde. Uma velhota simpática que servia café e bolos a meia cidade sempre com um sorriso na cara. Ela reparou que eu não me encontrava do melhor dos humores e tentou descobrir o que eu tinha por três vezes com palavras doces, piadas sobre os alimentos que ela entregava e o típico dialogo sobre o tempo. Mas eu nem uma vez cedi, sabia melhor do que entregar as minhas preocupações à maior coscuvilheira deste lado da cidade, uma única palavra errada que a minha língua quisesse dizer e espalhar-se-ia pelas ruas que nem fogo num dia quente de verão num bosque de pinheiros.

Depois de me alimentar sai dali. Sabia para onde tinha de seguir mas demorei a chegar lá, andei por ruas intermináveis, fazendo um zig-zag pela cidade, quanto mais tempo demorasse melhor. Mas eventualmente, acabei por me deparar com o meu destino. Um grande portão enferrujado e entreaberto convidava-me a entrar. Uma caveira no topo do arco de ferro que ligava as duas colunas parecia observar-me com as suas órbitas vazias. Só faltava um corvo guinchar numa árvore próxima para completar a imagem caricata da minha situação.

Entrei pelo portão que rangeu suavemente quando o afastei. Prossegui pelo caminho de pedra onde criptas ostentosas flanqueavam-me de ambos os lados até chegar às mais modestas tumbas. Lá procurei uma lápide enegrecida que eu já não visitava há muito tempo. Quando a encontrei ajoelhei-me à sua frente. Passei as mãos pela terra molhada pela chuva e fechei os olhos tentando evitar as lágrimas ao ver a foto que se encontrava cravada na lápide. Aquele sorriso puro nunca mais aqueceria este mundo, aqueles olhos brilhantes nunca mais nos iluminariam com a sua inocência. Respirei fundo e tremulamente abri os olhos.


- Eu vi-te hoje. – Falei na esperança que alguém me ouvisse. – Não sei se me querias dizer algo, ou se estavas a tentar avisar-me de algo. Mas sei que eras tu.


Um trovão ouviu-se em cima da minha cabeça.


- Eu sei que eras… - Parei quando a agonia apossou-se da minha fala. Nem por um segundo queria que a tristeza transparecesse na minha voz. - … Tu foste tão boa para mim e foi assim que eu te paguei. Desculpa-me.


O céu rugiu outra vez anunciando o iminente dilúvio.


- Desculpa-me por o que te fiz, desculpa-me por nunca te ter vindo visitar. – Olhei para a dedicatória cravada na pedra que dizia “Aqui jaz Nadja. Amada filha e devota amiga.” E lutei outra vez contra a tristeza que me tentava assolar.

- Se pudesse voltar atrás eu…

- Tu não terias feito diferente. – Interrompeu-me uma voz cavernosa e severa.

- Não sabes do que falas. – Disse transformando a minha agonia em raiva e transparecendo-a com um sorriso. – Se ela pudesse continuar viva…

- Ela não podia. E tu sabes que não. – A voz insistiu. – Era o seu destino, era a tua prova e tu tinhas de a passar.

- Tinha de a passar ou o quê? Não tinha direito a esta merda de vida? Se não o tivesse feito teria eu tomado o seu lugar e talvez, apenas talvez este mundo fosse melhor. – Bufei para o meu atormentador.

- Não fales do que bem sabes ser mentira. – Respondeu-me rispidamente. Eu senti a sua voz a aproximar-se e a sua sobra a tapar-me. – Não tinhas outra opção. Ele tinha de ser travado.

- Ele?! Ele?! As únicas coisas que vi nos olhos dela foram confusão e tristeza por não saber a razão por o qual eu o tinha feito e de certeza que não o vi a “Ele”.


Levantei-me e virei-me repentinamente para confrontar o meu atormentador, mas antes de lhe poder olhar nos olhos o vulto que me suprimia com a sua sobra transformou-se num bando de corvos que rapidamente dispersaram rapidamente soltando guinchos repetitivos como se gozassem comigo.


- Maldito sejas mais a merda do teu destino. – Gritei com fúria.


Nesse preciso instante o céu lançou o seu dilúvio sobre mim. Segundos passaram onde eu revi tudo o que me tinha acontecido nestes últimos anos, mas não fiquei triste, não me senti entregue ao desespero, simplesmente ri-me. Ri-me à gargalhada. E assim finalmente tinha completado a figura que tinha ficado perfeitamente pintada: Um cemitério, chuva, corvos e uma criatura desvairada a rir-se loucamente.