sexta-feira, junho 09, 2006

966

É de noite, as janelas estão fechadas, a porta do quarto semi-encostada e Felismino vê televisão tranquilamente.
De súbito, a tranquilidade é quebrada por uma porta que começa a ranger provocando barulhos que lembram risos maléficos, o autoclismo na casa de banho começa a pingar água para a sanita, e o cão lá fora coça as pulgas encostado à porta da cozinha.

O céu está coberto de uma neblina espessa e impenetrável que confere um ar profético à noite. Na rua abaixo, Otávio com os seus binóculos tenta observar a sua vizinha a partir da varanda enquanto esta vestia a sua camisa de noite. A noite cerrada gemia na expectativa. Pelo meio dos arbustos começam a aparecer vultos disformes que sussurram entre si as letras da Black Candy, uma música dos Melões Espaciais.

Bernardo, vizinho de Felismino e Otávio, distraía-se a ver perfis de hi5, quando o monitor do seu computador escurece, a sua drive de disquetes começa a deitar um fumo insondável e da drive de cd’s sai uma mão sapuda que tenta agarrar uma das suas pernas. Ouve-se então uma voz gutural gritando "Preciso de objectos cilíndricos!!" e as suas colunas começam a tocar a "Ride of the Valkyries" de Wagner.

Felismino encontrava-se tremendamente assustado, ignorando que os seus dois amigos estavam também em pânico por causa das presenças diabólicas que assombravam o bairro. O seu cão parou de coçar as pulgas para dar lugar a alguém a sacudir os tapetes lá fora. O autoclismo parou de pingar e a porta fechou-se inesperadamente para voltar a abrir-se de seguida, deixando entrar um ronco vindo do quarto dos pais.

Otávio, céptico por natureza, resolve não acreditar em assombrações, e decide averiguar por si próprio os vultos estranhos nos arbustos. Saído de casa, dirigia-se às traseiras desta quando se apercebeu de uma presença sinistra, sacudindo ruidosamente um tapete, à porta da casa de Felismino. Deteve-se uns momentos atrás da sua vedação, hipnotizado pelo ritmo regular e contagiante com que os tapetes atingiam a parede.

Entretanto, o confuso Bernardo decide telefonar imediatamente ao técnico que lhe vendera o computador:
– Sô Sousa... Passa-se algo de errado com a drive de cd’s…
– Hein? Tu a estas horas?
– Está uma mão a sair de lá de dentro!
– O quê?!
– E começou de repente a tocar uma música esquisita…
– Eu amanhã trato disso, pá. Vai mas é dormir…

Do outro lado da linha, o Sr. Sousa desliga o telefone. Bernardo ao voltar para o seu quarto repara que tudo tinha voltado ao normal. Senta-se na cadeira, mas de repente ouve a tal voz gutural sobre-humana atrás de si a dizer:
– Não vieste hoje à aula porquê? Queres que te baixe a nota para 9, é?!



Na casa de Felismino, os barulhos continuam. O som que Felismino julgava ser o cão a coçar as pulgas contra a porta havia recomeçado, entrando em sinfonia com o barulho do tapete a ser sacudido. Finalmente, ganha coragem para se levantar da cama e, quando o faz, repara que esta se encontrava banhada de sangue. Assustado, corre para a casa de banho e repara que o sangue vinha do seu nariz por tentar sacar macacos muito fundo. Felismino agarra em papel higiénico e limpa a cara. Atira o papel para a sanita, puxa o autoclismo e vai à sala espreitar pelos buracos dos estores, vendo um vulto escuro agachado atrás de uma cerca, com um par de binóculos a olhar directamente para a sua casa. Felismino corre apavorado para a cozinha para beber leite. Entra sem acender a luz. É então que repara que a porta da cozinha tinha um enorme buraco que não estava lá antes. Enfiado nesse buraco estava o seu cão, esmagado pelo peso de uma carraça enorme na sua orelha. Apavorado, Felismino solta um grito ensurdecedor.

Lá fora, Otávio observava com os seus potentes binóculos a técnica perfeita do enigmático sacudidor de tapetes e tomava notas cuidadosamente, quando foi interrompido por um grito deveras efeminado, vindo da casa do Felismino. Apanhado de surpresa, o sacudidor de tapetes ajusta a sua longa capa negra e entra em casa de Felismino, com ambos os braços no ar. Otávio resolve voltar para casa. Quando o faz, pisa pastilha elástica. Agora já não podia voltar, ou levava nas orelhas da mãe. Ao longe, um espanta-espíritos toca uma nota aleatória ocasionalmente. Ponderava o que fazer quando dois mosquitos de duas cabeças e altura de dois andares emergiram dos arbustos da casa da sua vizinha e voaram atrás dele pela rua fora. Quando deu por si estava em frente à casa do Bernardo, com escassos metros de avanço dos mosquitos e poucas alternativas viáveis.

Bernardo é escravizado por Polga, o espírito maligno que assombrava a sua casa naquela noite. Esta obriga-o a fazer exercícios sobre demonstrações enquanto vai trauteando a Smoke on the Water. Num momento de distracção em que Polga verificava se o seu decote estava suficientemente aberto, Bernardo salta pela janela fora, cai em pé e encaminha-se para a barraca do quintal onde o seu pai guarda as ferramentas para ir buscar um ancinho. Uma corrente de ar, acompanhada de um suspiro misterioso, faz a porta da barraca bater atrás de si, trancando-o momentaneamente na escuridão.

Felismino, apavorado, mas agora sem sede, parou mudo no meio da sua cozinha. Pôs-se à escuta. O barulho do tapete tinha cessado, mas algo não estava bem. Começou a ouvir passos. A luz da rua projectava-se no chão pelos orifícios dos estores, criando um ambiente apocalíptico dentro da sua própria cozinha. Os passos pararam abruptamente. Pé ante pé, Felismino aproximou-se novamente do seu estore sem fazer ruído. Um som de gotejar apoderou-se novamente da sua atenção. Espreitou pela janela.

O vulto de binóculos que espiava a sua casa tinha agora desaparecido. A lua cheia iluminava a rua e Felismino pôde ver ao longe dois mosquitos demoníacos de duas cabeças a lutar violentamente com uma presença fantasmagórica feminina, que parava ocasionalmente para retocar a maquilhagem. Esta, num ataque feroz, agarra ambas as cabeças de um dos mosquitos que começa a esbracejar tentando em vão libertar-se. O outro, a princípio, não conseguiu ajudar o companheiro, pois a violência daquele golpe era tanta que até era difícil olhar. Mais tarde, não aguentando mais ver o companheiro sofrer, mata-o acabando com o prazer da fantasma diabólica, que irada lança-se sobre este! Engalfinham-se os dois no meio do chão.

Prontamente um árbitro de wrestling aparece para forçar a separação de ambos, quando Polga aplica um ataque ilegal. De seguida, o mosquito colossal consegue morder o seu adversário no pescoço, deixando-a com uma gigantesca borbulha que esta coça prontamente. Numa fracção de segundo, o mosquito projecta-a para o chão usando as suas duas asas como alavancas. Mas Polga não se rendia. Reunindo todas as suas forças, a fantasma demónio chama a si toda a fúria e toda a animosidade dos mais profundos infernos e com um rugido lança sobre o seu oponente um ataque final: uma mancha disforme fogosa acompanhada por morcegos, pedaços de giz e apagadores de quadro, que deixam o mosquito robótico knocked out. O árbitro ergue o pulso de Polga em sinal de vitória, sendo degolado momentos depois. Polga, tendo gasto todas as suas energias no combate, desaparece coxeando entre as paredes sombrias de um beco sem saída.

Felismino assistiu a todo o espectáculo e só se apercebeu das horas que eram quando o seu balde de pipocas acabou. Ainda assim, pôde ver o seu amigo Otávio aparecer detrás de um poste de electricidade, onde se escondera durante o combate. Foi então que, quando menos esperava, ouviu um restolhar vindo da porta da cozinha. Voltou-se. O seu cão que jazia moribundo tinha desaparecido, dando lugar a uma poça de sangue. Vindo da parede oposta, começou a ouvir o barulho estridente de garras afiadas a cortar pelo papel de parede engordurado, criando do nada marcas verticais de onde escorria um líquido negro e viscoso como petróleo. Desesperado, voltou-se de novo para a janela e desatou a gritar acenando a Otávio e a Bernardo que entretanto saíra da barraca de ferramentas. Mas estes não o viram. Resolveu parar, não fosse atrair mais atenções indesejadas. Mas era demasiado tarde. De um momento para o outro, na sua janela aparece o poltergeist com uma capa negra e ambos os braços no ar que lhe grita PEEK-A-BOOOOO!!!!!, atirando-o para o chão como que catapultado. Felismino, em pânico, começa a chorar compulsivamente. Correu então para a casa de banho, atrasado pelo líquido negro que escorria pelas paredes e já lhe dava pelas canelas. Fechou-se lá dentro e, entre soluços, rezou para si uma oração.

No meio da rua, Bernardo revelou os primeiros sintomas de loucura e esquizofrenia quando confessou a Otávio que vira as sombras a brincar à apanhada com os ratos dentro da barraca de ferramentas. Confessou ainda que falou com uma fada dos dentes claustrofóbica que lhe pediu a mão em casamento e que inclusivamente teve um filho seu, cujo primeiro dia de escola serviu para aprender que o trinco da porta da barraca só podia ser aberto por fora e a barraca não tinha oxigénio suficiente para mais de 10 minutos.
Otávio lembrou-se de ter visto um ser obscuro dirigir-se a casa de Felismino e por isso sugeriu a Bernardo irem lá investigar. A meio do caminho, ouviram gritos abafados de origem desconhecida, que os fizeram acelerar o passo preventivamente.

Chegados à casa de Felismino, abriram a porta com dificuldade e foram surpreendidos por um cheiro a decomposição emanado por diversos cadáveres que ornamentavam as paredes da sala de estar. Um dos quartos tinha sido transformado num santuário onde vários números estavam expressos em dezenas de complexas equações. No centro desse quarto, rodeado por velas, podia ler-se “CMLXVI: Maledictione Perpetua!” escrito com o sangue de um braço humano mutilado. À medida que eles avançavam, as equações iam-se escrevendo misteriosamente ao longo de todo o corredor que levava à cozinha, de onde uma ténue luz se fazia exibir por um buraco na porta. Abriram-na. Uma avalanche de líquido viscoso desabou sobre os seus pés e inundou todo o corredor. Entraram. No centro da cozinha estava um homem careca vestido com um fato, um capuz e uma capa negra que lhe caía sobre as costas. Quando os viu lançou-lhes um sorriso altivo e um olhar de desdém. Preparava-se para falar-lhes, mas foi interrompido por um grito de fúria que ecoou pela casa toda.

Polga, já recuperada, apareceu pela porta que dava para o corredor. A sua cara estava desfigurada, mas do seu corpo, agora mais volumoso, provinha uma aura de energia e terror que parecia saída do pior pesadelo de sempre. O poltergeist careca desaparecera. Otávio e Bernardo encontravam-se estáticos com pavor enquanto Polga avançava para eles triunfante. Estaria o fim próximo? Provavelmente: Bernardo encontrava-se demasiado traumatizado para lutar e Otávio estava com uma perna praticamente incapacitada devido à pastilha elástica demoníaca que pisara e lhe entranhara nos músculos e ossos, possuindo-os. Polga estava prestes a agarrar a cabeça de Otávio quando, num acto heróico, o agora zombie cão de Felismino salta para cima dela besuntando-a com uma saliva cáustica e mordendo-a nos braços. Ela afasta-o com um tabefe atirando-o contra uma parede e caminha na sua direcção, pronta a terminar com ele. Foi então que o poltergeist apareceu por trás dela e, com um movimento destro, deu uma cajadada em cheio na cabeça de Polga, usando uma panela de pressão que estava dentro da máquina de lavar louça. Polga caiu estatelada no chão, com o seu crânio rachado em dois. Centenas de baratas envoltas em vísceras sangrentas saíram de dentro dela escondendo-se em todas as fendas que encontraram nas paredes, fazendo o corpo desaparecer. Minutos depois, a assombração foi levantada e a casa de Felismino tinha voltado ao normal. O poltergeist sentou-se à mesa com uma calma sobre-humana e observou Otávio e Bernardo a ajudar Felismino sair da casa de banho.

Deram uma vista de olhos pela casa, para se certificarem que tudo voltara ao normal. Depois, juntaram-se os três ao poltergeist, sentaram-se à mesa, e com ele passaram o resto do serão a conversar alegremente, a beber e a rir dos eventos daquela noite, acompanhados por uma pacífica e relaxante cartada de sueca.

Acontecimentos verídicos dolorosa e arduamente relatados em conjunto por: Neoclipse, Lunático e No_Imagination (aka Turkunicovo).