sexta-feira, abril 22, 2011

Os Nefastos

Parte 3

Parte 2

Parte 1

Cheguei a casa mas não tinha a noção de como o tinha feito. Tentei recordar-me do caminho que percorri até aqui mas, entre o meu colapso mental no cemitério e o meu despertar quando cheguei a casa, não me recordava de nada para além de esgares de medo e desprezo de criaturas que eu não conhecia. Fui à casa-de-banho, enchi o lavatório com água e enfiei a minha cabeça lá debaixo. Soltei um grito e vi as bolhas de ar a sair da minha boca e a fazerem o seu caminho para a tona da água. Olhei-me ao espelho e ri-me quando vi a maquilhagem borrada e a ser escorrida para fora da minha cara pela água, parecia um palhaço triste que tinha acordado numa poça de lama. Limpei-me, de seguida lancei-me contra o sofá e fechei os olhos e entreguei-me novamente ao mundo dos sonhos.

Fui imediatamente transportada para uma floresta no mais negro breu debilmente quebrado por uma lua prateada que se erguia acima da minha cabeça. Através dos ramos despidos das árvores a luz fugaz iluminava debilmente o chão da floresta. Perto de mim havia um lago para onde eu prontamente me desloquei sob o leve som de um rachar de ramos por baixo dos meus pés. Lavei a cara na água fresca e nas ondas criadas pela minha intrusão consegui ver a sua superfície a espelhar o meu reflexo. Torci o nariz ao verificar que tinha sido enfiada num vestido branco, que não pecava por falta de elaboração. Quase parecia uma princesa, apesar do corte de cabelo à maria-rapaz não me favorecer nada.

Balancei-me gentilmente enquanto me observava na tona da água, tentando ficar acostumada ao meu aspecto. Um uivo surgiu do longe e eu quedei-me a olhar para a escuridão. Este sonho não era claramente o meu, disso já tinha chegado à conclusão, o que me fazia questionar o que raio estaria aqui a fazer.

Não tinha vantagem nenhuma em ficar parada portanto decidi explorar este plano de existência. Conforme caminhei por este plano de sonho consegui distinguir algo estranho no ar, havia um cheiro adocicado que eu recordava de um tempo longínquo, as formas das árvores eram todas muito semelhantes e estavam todas mortas, até o caminho parecia não mudar muito, o que fazia-me acreditar que estava longe do criador do sonho.

Continuei pelo que pareceu ser horas a andar à roda, o plano dos sonhos consegue ser assim chato quando éramos apenas um convidado, no entanto acabei por andar o suficiente para algo mudar. Perante mim surgiu uma pequena clareira com uma casa de madeira no meio, das janelas surgia uma luz trémula e fraca, e pouco depois da porta encontrava-se um pequeno quintal.

Um som estridente ecoou por cima de mim e ao olhar vi um mocho, com os seus grandes olhos amarelos fixos em mim. O mocho agitou-se e soltou outro grande piar antes de começar a articular palavras.

- Eu conheço a tua cara.

- Ora eu não conheço a tua. – Respondi em tom trocista. – Talvez porque não tenha muitos amigos com penas, ou porque para mim vocês são todos iguais.

- Ah, esse sarcasmo insolente. Agora estou a ver quem és criatura. Isso explica a inabilidade de conseguires libertar-te da tua forma. Vocês humanos são tão fugazes.

- Kendra, suponho? – Indaguei tendo a noção da criatura com quem trocava palavras. – Quem mais para ter tal desdém pela raça humana. Mas entendo, seu tivesse o teu corpo também quereria ver-me livre dele.

Ela piou outra vez, rodou a cabeça para a cabana no meio da floresta e falou como se eu não tivesse dito nada.

- Este não é um sonho perturbado. Não há emoções descontroladas. É desagradavelmente insípido.

- Então, não há nada de interessante para fazer? – Soltei um suspiro. – Também nem sei o que estou aqui a fazer.

- Quem sabe… – Continuou a mulher mocho mudando o tom da sua voz mostrando um pingo de ansiedade. – Talvez estejas aqui para causar discórdia. Sim! Tu vais causar discórdia!

- Não obrigada. – Desculpei-me com um ar aborrecido. – Não estou para alimentar-te. É demasiado perturbador, até para mim. Para além do mais, a Guelika pode ficar com ciúmes.

- O teu humor é desperdiçado aqui. Se não o queres fazer, senta-te num canto e desaparece.

Depois disso ela piou, esvoaçando por cima de mim e desapareceu na floresta. Mas ela precisava de se alimentar, se estava aqui era porque o dono deste sonho estaria por perto e sendo assim, ela também não se afastaria da zona.

Avancei com cuidado, não sabendo o que me esperava e tentando não perturbar nada, reparei que toda esta zona estava detalhada com muito mais cuidado. Desde os diferentes troncos que compunham a cabana, até uma marca cravada de um dos seus lados. No que parecia ser o pequeno quintal estava uma campa com uma cruz de madeira. Ainda estava afectada pela minha visita ao cemitério e não me atrevi a olhar com atenção. Gentilmente abri a porta da cabana e deparei-me com um homem debruçado sobre uma lareira quase apagada. Entrei silenciosamente e senti o suave e frio toque da madeira na planta dos meus pés, apercebendo-me assim que não tinha nada calçado. Soltei um suspiro frustrado enquanto os meus pés tentaram habituar-se à sensação, suspiro esse que chamou a atenção do homem.

- És tu! Vistes buscar-me, não é? – Perguntou com os olhos assustados.

- Acho que não fazes uma real ideia de quem sou. - Respondi algo curiosa para saber o que se passava por aquela cabeça.

- És a morte! E finalmente vieste buscar-me. – Explicou assustado

- Filho da puta do carma. Passas uns tempos em serviço público e ficas marcada para sempre. – Sussurrei levando a mão à testa. De seguida recompus-me, estiquei os braços e falei num tom assertivo. – Eu pareço-te com a morte? Diz-me, o que vez à tua frente?

- A mor…

- Juro-te… - Interrompi. – … Se dizes a morte outra vez, eu agarro-te numa parte muito frágil do teu corpo e torço-a para além da utilidade. – Levei um dedo à boca como se pedisse silêncio e falei mais uma vez com a voz arrepiantemente calma. – Mesmo que sejas masoquista, eu juro-te, não vais gostar. E agora, mais uma vez, o que sou eu?

- Uma mulher. – O homem respondeu com uma voz trémula.

- Boa. Já temos género definindo, que mais?

- Estás vestida de branco. – A sua voz acalmou e tornou-se mais fluida. – Descalça e com um ar de Maria-rapaz.

- A serio? Nem vestidos me safam. – Queixei-me. É por isso que nunca os uso.

- Mas estás a usar uma agora.

- és perspicaz. Mas também tenho de admitir que estou algo preplexa em relação a esta escolha. Não me queres iluminar sobre isso?

- Porquê eu?

- Porque… - Custou-me a responder entendendo que ele não estava ciente desta realidade. – O que é que estás aqui a fazer?

- Estou à espera da minha mulher. – Disse-me com um brilho melancólico nos olhos, voltando a sua atenção para a pequena chama a crepitar no meio das brasas. – Ela deve estar a chegar a qualquer momento.

- Ah… - Suspirei deixando-me ficar parva a olhar para o homem por um bocado. Mas eventualmente juntei “um mais um”. – Ela… não vem pois não?

- Vem sim! – Respondeu-me ríspida e abrasivamente com angustia a formar-se na cara.

- Ela está morta, não está? Dai a campa lá fora.

- Não, mentes! – Gritou com lágrimas nos olhos. Então das suas mãos começou a pingar sangue como se chagas tivessem formado. Dessa aparição tirei outra conclusão e um sorrizo sádico formou-se no meu rosto.

- Tu tens sangue nas tuas mãos. Diz-me, foste tu próprio que a mataste.

- Não! Não fiz nada. Cala-te! – Gritou comigo com lágrimas de sangue a escorrer-lhe pela face.

- Sim, sim. Muito dramático. Mas isso não muda nada do que aconteceu. – O meu sorrizo não murchou enquanto continuava a atacar o homem, senti-me a crescer e vi as minhas roupas a serem tingidas de vermelho. – Ela gritou? Ou chorou? Ou melhor, ela ainda te assombra?

- Cala-te! – Gritou outra vez laçando-se contra mim em fúria. Felizmente, eu já tinha aprendido uns truques neste plano e consegui rapidamente desaparecer de onde estava e reaparecer atrás dele.

- Estavas à procura da tua próxima vitima? Lamento mas eu não vou abaixo facilmente.

- Seu demónio! Porque me atormentas? – Questionou bruscamente. E sem me dando tempo para responder abandonou a casa.

Suspirei e segui-o. Fui-me deparar com ele debruçado sobra a campa da sua amada e cavando freneticamente com as mãos ensanguentadas, enquanto por cima de nós um mocho branco circulava, piando extasiado como se fosse um riso ecoando pela noite. Suspirei outra vez, verificando que tinha acabado por fazer o que a Kendra queria.

Resoluta em acabar com isto, movimentei-me para o golpe de misericórdia. Quando o homem desenterrou a mão da sua amada e beijava-a loucamente eu já estava ao seu lado porta para acabar com isto. Com a maior força que consegui pontapeei-o no estômago gritando.

- Isto é um sonho, palhaço!

Assim que a minha frase acabou, todos os sons quebraram. A luz invadiu-me os olhos e numa questão de segundos voltei ao mundo real. Inspirei sofregamente como se fosse um bebé a dar o primeiro choro enquanto os meus olhos reajustavam-se a este mundo.

Acordada e algo perturbada com o brusco acordar, questionei-me incessantemente.

O que raio estava eu a fazer no sonho daquele homem?

quarta-feira, abril 06, 2011

Os Nefastos

Parte 2

Parte 1

Acordei. Os meus olhos não demoraram muito a habituar-se à escuridão. Ainda devia ser cedo, visto que a Guelika continuava a dormir e ela era mulher de se levantar com as galinhas. Ergui-me da cama, mas mantive-me perto dela. Passei-lhe a mão pelos seus cabelos castanhos enquanto lembrei-me do sonho que tinha tido. Lembrei-me da última vez que tinha estado com a Nadja e da maneira que nos separamos. A mesma angustia que tinha sofrido no nosso último encontro começou a apossar-se de mim outra vez, mas quando o desconforto ameaçava apossar-se totalmente de mim e o meu pensamento começava a tomar a forma de abandono daquele local a Guelika estremeceu, virou-se na minha direcção e abriu os olhos ainda sonolentos. Ela não sorriu nem falou, apenas cravou em mim aqueles olhos penetrantes e como se perscrutasse a minha alma questionou:


- O que se passa?

- Tive um sonho. – Respondi, sentindo como se algo me sufocasse.

- Foi Ele? – Interrogou-me com os olhos franzidos e uma faísca de raiva dentro deles.

- Não… Pelo menos eu acho que não. Sonhei com a Nadja.


A sua cara mudou, a raiva transformou-se em pena e tristeza. Odiei-a por sentir pena de mim.


- Não me olhes assim! Não sou nenhum bebé que precises de amamentar. – Cuspi.

- Passaram-se dois anos! Dois! E tu ainda reages assim? – Gritou continuando com um semblante triste.

- Podiam ter sido vinte anos! Nunca me vou perdoar por o que fiz.

- Não tiveste escolha! – Tentou argumentar mas as palavras morreram na sua garganta quando o quarto pareceu-se iluminar. – Desculpa.

Não me apeteceu falar. Abracei-a e fiz-lhe o favor. Trocamos um beijo demorado e depois estreitei o abraço. Passado um pouco expliquei-lhe o sonho, que ela ouviu com atenção sem uma única vez atrever-se a conjecturar sobre o seu significado, depois falamos de coisas sem interesse, do passado e do futuro e a minha mente pareceu aliviar. Nunca sabia se era um efeito natural que a Guelika tinha sobre mim ou se fazia parte das suas bruxarias a serenidade que ela me podia oferecer apenas falando comigo.

Decidimos que o nosso momento de serenidade tinha de acabar. Ela precisava de tratar dos assuntos do bar e eu precisava de ir visitar a Nadja, ainda que lhe tivesse ocultado que o ia fazer. Descemos e deparamo-nos com o seu empregado, um homem alto de pele escura e face carrancuda. Normalmente um homem de mau humor e que me parecia não gostar muito de mim.


- Bom dia. – Cumprimentou ele secamente.

- Bom dia sorridente. – Trocei eu com um sorriso de orelha a orelha. – Aw, tu ai a carregares essas grades de cerveja pareces um ursinho adorável a trabalhar.

- Cuidado do que falas, ainda vais acabar por ter de engolir algumas palavras. – Respondeu ele calmamente mas com a sua tão afamada voz dura.

- No dia em que eu tiver de engolir palavras, eu juro que vais engolir os teus próprios dentes. – Repliquei rapidamente e ainda com o mesmo sorriso na cara.

- Silencio! Ambos. – Gritou a Guelika depois apontou para mim. – Vai-te embora, agora preciso de trabalhar e não quero que estejas a interferir com os meus empregados.


Anui e abandonei o edifício. Quando cheguei à rua as nuvens ainda estavam carregadas e cobriam o céu, deixando o sol brilhar apenas por pequenos rasgos. Eu soube nesse instante que não voltaria a casa sem antes me encontrar outra vez ensopada pela chuva e não seria por falta de velocidade. Não fui directamente para casa. Antes disso passei pelo café da senhora Matilde. Uma velhota simpática que servia café e bolos a meia cidade sempre com um sorriso na cara. Ela reparou que eu não me encontrava do melhor dos humores e tentou descobrir o que eu tinha por três vezes com palavras doces, piadas sobre os alimentos que ela entregava e o típico dialogo sobre o tempo. Mas eu nem uma vez cedi, sabia melhor do que entregar as minhas preocupações à maior coscuvilheira deste lado da cidade, uma única palavra errada que a minha língua quisesse dizer e espalhar-se-ia pelas ruas que nem fogo num dia quente de verão num bosque de pinheiros.

Depois de me alimentar sai dali. Sabia para onde tinha de seguir mas demorei a chegar lá, andei por ruas intermináveis, fazendo um zig-zag pela cidade, quanto mais tempo demorasse melhor. Mas eventualmente, acabei por me deparar com o meu destino. Um grande portão enferrujado e entreaberto convidava-me a entrar. Uma caveira no topo do arco de ferro que ligava as duas colunas parecia observar-me com as suas órbitas vazias. Só faltava um corvo guinchar numa árvore próxima para completar a imagem caricata da minha situação.

Entrei pelo portão que rangeu suavemente quando o afastei. Prossegui pelo caminho de pedra onde criptas ostentosas flanqueavam-me de ambos os lados até chegar às mais modestas tumbas. Lá procurei uma lápide enegrecida que eu já não visitava há muito tempo. Quando a encontrei ajoelhei-me à sua frente. Passei as mãos pela terra molhada pela chuva e fechei os olhos tentando evitar as lágrimas ao ver a foto que se encontrava cravada na lápide. Aquele sorriso puro nunca mais aqueceria este mundo, aqueles olhos brilhantes nunca mais nos iluminariam com a sua inocência. Respirei fundo e tremulamente abri os olhos.


- Eu vi-te hoje. – Falei na esperança que alguém me ouvisse. – Não sei se me querias dizer algo, ou se estavas a tentar avisar-me de algo. Mas sei que eras tu.


Um trovão ouviu-se em cima da minha cabeça.


- Eu sei que eras… - Parei quando a agonia apossou-se da minha fala. Nem por um segundo queria que a tristeza transparecesse na minha voz. - … Tu foste tão boa para mim e foi assim que eu te paguei. Desculpa-me.


O céu rugiu outra vez anunciando o iminente dilúvio.


- Desculpa-me por o que te fiz, desculpa-me por nunca te ter vindo visitar. – Olhei para a dedicatória cravada na pedra que dizia “Aqui jaz Nadja. Amada filha e devota amiga.” E lutei outra vez contra a tristeza que me tentava assolar.

- Se pudesse voltar atrás eu…

- Tu não terias feito diferente. – Interrompeu-me uma voz cavernosa e severa.

- Não sabes do que falas. – Disse transformando a minha agonia em raiva e transparecendo-a com um sorriso. – Se ela pudesse continuar viva…

- Ela não podia. E tu sabes que não. – A voz insistiu. – Era o seu destino, era a tua prova e tu tinhas de a passar.

- Tinha de a passar ou o quê? Não tinha direito a esta merda de vida? Se não o tivesse feito teria eu tomado o seu lugar e talvez, apenas talvez este mundo fosse melhor. – Bufei para o meu atormentador.

- Não fales do que bem sabes ser mentira. – Respondeu-me rispidamente. Eu senti a sua voz a aproximar-se e a sua sobra a tapar-me. – Não tinhas outra opção. Ele tinha de ser travado.

- Ele?! Ele?! As únicas coisas que vi nos olhos dela foram confusão e tristeza por não saber a razão por o qual eu o tinha feito e de certeza que não o vi a “Ele”.


Levantei-me e virei-me repentinamente para confrontar o meu atormentador, mas antes de lhe poder olhar nos olhos o vulto que me suprimia com a sua sobra transformou-se num bando de corvos que rapidamente dispersaram rapidamente soltando guinchos repetitivos como se gozassem comigo.


- Maldito sejas mais a merda do teu destino. – Gritei com fúria.


Nesse preciso instante o céu lançou o seu dilúvio sobre mim. Segundos passaram onde eu revi tudo o que me tinha acontecido nestes últimos anos, mas não fiquei triste, não me senti entregue ao desespero, simplesmente ri-me. Ri-me à gargalhada. E assim finalmente tinha completado a figura que tinha ficado perfeitamente pintada: Um cemitério, chuva, corvos e uma criatura desvairada a rir-se loucamente.

quarta-feira, março 30, 2011

Os Nefastos

Parte 1

Acordei. Os meus olhos sentiram dificuldade em habituar-se à luminosidade. Via tudo desfocado mas apercebi-me que não estava no mesmo lugar. Agora encontrava-me numa cadeira, num cubículo de pequenas dimensões com um foco de luz directamente à minha frente. Lentamente comecei a aperceber-me de onde estava quando os meus olhos habituaram-se à luz e consegui ver a silhueta a dançar à minha frente. Não quis acreditar e levei as mãos à testa, não tinha a lógica nenhuma eu ter deixado a Guelika para vir aqui, muito menos a hipótese de ela ter-me posto aqui por diversão. Conforme a minha visão se habituou, consegui ver as formas da musa que se movia à minha frente que balançavam lenta e gentilmente ao som de uma música que parecia estar gravada na minha cabeça. Ainda não acreditava que estava ali outra vez, mas já que tinha pago, ou alguém tinha pago por mim, aproveitei o espectáculo até ao fim.

A música acabou e a sua dança cessou, ela ajoelhou-se à minha frente, soprou-me um beijo e ficou a olhar-me nos olhos com um sorriso na cara. Eu também não desviei o olhar conforme a porta se fechava diante nós e aquelas duas esferas azuis como o mar desapareciam perante elas. A porta fechou e eu enfiei a cabeça entre as pernas, suprimindo um grito. Sai do cubículo e tentei entender onde estava. O cheiro forte a tabaco e as paredes pintadas a castanho com posters das “artistas” colados com fita-cola era uma visão conhecida. Estava no “Abraço das Serpentes”, o bar de strip barra peepshow mais reles cá do sítio. Eu já tinha frequentado este sítio, mais vezes do que era saudável, mas já tinha passado muito tempo desde que eu vinha aqui, mesmo muito e ainda não conseguia entender porque raio estava eu aqui outra vez.

Foi então que reparei num par de olhos grandes e amarelos no canto da sala a olhar para mim. Uma criatura olhava para mim com um esgar de satisfação. Não sabia quem ele era mas ele parecia conhecer-me a mim. Avançou até mim. Fato branco e calças a condizer, com uma gravata azul. Pele verde e escamosa, dois lábios quase inexistentes e uma careca que parecia ter sido polida e brilhava nas luzes do estabelecimento. Ele sorriu para mim com uma fileira perfeita de dentes brancos e estendeu uma das suas mãos reptilianas em cumprimento.


- Daniel Leudovico, ao seu dispor. – Apresentou-se quando lhe apertei a mão. – E você não precisa de dizer quem é, já ouvi dizer muito boas coisas ao seu respeito.

- Muito prazer. Mas lamento se não o conheço. – Respondi com a mente ainda mais confusa.

- Ora bem, eu sou o proprietário deste estabelecimento. Quer dizer, o novo proprietário.

- Novo?

- Não soube? O Marco faleceu a semana passada. Eu era o sócio dele e assumi o seu cargo e tenho de admitir que até é um buraco acolhedor. – Informou-me mantendo sempre o sorriso que fazia parecer que queria vender algo.

- E tem o hábito de cumprimentar pessoalmente todos os seus clientes. – Respondi, sentindo-me mais ciente de mim.

- Por amor de Deus não! – Clamou benzendo-se. Ri-me dele ao ver fazer aquele gesto, era adorável ver o dono de um lugar destes como um devoto. - Não Já viu a maioria das pestes que frequentam este local? A maioria deles, nem sei onde andam com as mãos, já para não falar dos ninhos de doenças que são. Não, eu guardo a minha presença para criaturas mais ilustres, como você.

- Como eu? – Disputei com estampando o meu sarcasmo na cara. – Desculpe-me se eu não devoro inocentemente todos os retalhos de prezes que me lança. Eu não gosto de confiar em qualquer estranho que oferece-me a sua mão.

- É justo. – Respondeu o lagarto com uma expressão solene. – Mas fique a saber que e tenho conhecimento que fez alguns favores ao Marco. Talvez, eu necessite de alguma ajuda no futuro.

- Pois, já imaginava que fosse algo assim. O que é curioso estar-me a pedir, quando eu não me recordo sequer como vim para aqui. – Disse tentando sondar a reacção dele, que para meu desapontamento foi uma de confusão e surpresa.

- Veio para aqui com os seus próprios pés. Eu próprio vi a sua entrada.

- Está bom. – Esfreguei a cara e suspirei. – Tem sido uma noite interessante.

- Pois bem, permita-me que a torne ainda mais interessante. A Nadja pediu-me a sua companhia.

- Ela ainda trabalha cá?

- Sim e quando descobriu que estava cá quis imediatamente ser escolhida para seu prazer.

- Reparei nisso. – Lembrando-me da pequena dança que tinha desfrutado assim que acordei.


Vi ela a olhar-me pelo canto do corredor que levava até aos camarins das “artistas”. Atentos aos meus movimentos os seus dois grandes olhos azuis observaram-me a aproximar-me dela.

Quando estava perto, ela agarrou-me pela mão e levou-me rapidamente para a sala onde as senhoras se preparavam para os seus espectáculos. Lá dentro elas vestiam-se em roupas reduzidas e, ou fantasiosas, arranjavam a maquilhagem e gritavam umas com as outras, trocando insultos e mexericos. A Nadja levou-me pelo meio daquele mar de mulheres que me olhavam de relance e rapidamente perdiam o interesse. No meio daquela pressa algo correu mal. A minha mente turvou e uma sensação de tontura, de deslocação deturpada apossou-se de mim. Pareceu que caminhamos por horas e então deparei-me em frente a Nadja, no meio da rua, numa noite chuvosa.


- Obrigado por me trazeres a casa. – Disse ela debaixo da chuva com o seu olhar penetrante e doce cravado no meu.


Olhei para a esquerda e vi um prédio opressivo, de cor escura como a noite e varias luzes amarelas fugindo de algumas das janelas. A chuva continuava a cair.


- Como é que…? – Comecei mas interrompendo-me a meio da questão e rendendo-me à loucura. – Não tens de quê.

- Sabes? Eu gosto de ti, não és como todos os outros pervertidos… - Disse comovida. Apesar da chuva, consegui entender que chorava. – Tu vens e aprecias o espectáculo, a arte, aprecias-nos e aprecias-me. Não como todos os outros tarados que vêm-nos apenas como pedaços de carne, como auxílios à sua masturbação arfando como cães nojentos.

- Mas se tu não gostas desta vida, porque não mudas? – Perguntei eu com uma inocência que até me meteu nojo poucos segundos depois de a ter dito.

- E o que faria eu para alem disto? – Perguntou ela com o seu sorriso doce mas este também possuía um travo amargo. – Não sei fazer mais nada. A minha vida é isto. Agradeço-te pela companhia mas…

- Tens que sair da chuva para não te constipares. – Interrompi sorrindo-lhe.


Ela abraçou-me e despediu-se entrando no apartamento. Pouco tempo depois de desaparecer por entre a bocarra daquele monstro de pedra e cimento as luzes do seu interior apagaram-se. Um trovão rugiu por cima da minha cabeça, de repente parece que começou a chover outra vez. Mas agora havia algo estranho nesta chuva, era mais pesada, mais forte. Foi então que levantei as minhas mãos à altura da minha face e vi nelas as gotas a baterem e eram negras, negras como petróleo. Aquela chuva de escuridão foi rapidamente invadindo as ruas e cobrindo os edifícios e repentinamente tudo foi varrido. Tudo foi limpo pela escuridão que invadiu o mundo.

Abri os olhos com o coração a querer escapar-me pela garganta. O ouvi o ressonar característico da Guelika ao meu lado e o meu coração amansou. No entanto a imagem da Nadja não me saia da cabeça. Temi que algo se passasse com ela, não sou de acreditar em sonhos proféticos ou nada disso, mas talvez o facto de não ver a rapariga há algum tempo estava a deixar-me com preocupações que não devia.

Suspirei e tentei voltar a adormecer, mesmo com a irrequieta preocupação de que algo podia estar a passar-se de errado com a Nadja. Foi então que ouvi a chuva lá fora, a bater nas janelas, no tecto, nas paredes. Um arrepio percorreu-me a espinha e uma sensação de angústia apossou-se de mim.

A Guelika moveu-se um pouco no seu sono e estreitou o seu abraço como se tivesse apercebido da minha aflição. Suspirei outra vez sob o abraço desta filha de Hékate, independentemente dos possíveis feitiços que ela tinha metido em cima de mim, parecia que me acalmava como queria.


O que estou eu a pensar? Parece só que estou a encher a minha mente de palha…



Enfim…

quarta-feira, março 23, 2011

Os Nefastos

Tinha parado de chover, mas as minhas roupas já estavam ensopadas. Tinha encontrado um lugar onde me proteger das tempestade mas já tinha sido tarde demais, pingava por todo o lado e imaginava-me a espremer as roupas e com a água encher um bule e fazer um chá de camomila.


- Preferia um de limão e canela. – Opinou uma figura estranha ao meu lado.


Era uma criatura estranha de corpo corcunda, coberto por uma gabardina cinzenta, suportado com uma bengala que pouco parecia servir pois continuava bastante abaixo de mim, dedos ossudos e unhas compridas agarravam a bengala cravada com a escultura de uma cobra. Da minha posição podia ver-lhe o cabelo ralo e oleoso que formava como uma coroa em volta de uma limpa careca. O nariz pontiagudo espreitava de uma face cravada de rugas e pele caída que também albergava um par de olhos piscos e negros assim como lábios finos, quase inexistentes, que escondiam um sorriso macabro de dentes afiados.


- Já te disse para parares de fazer isso. Ou preferes que cada vez que estiver na tua encantadora presença não tenha mais nada que pensamentos um pouco devassos.

- Por favor não. - Suplicou com uma expressão de nojo. – Essas coisas dão-me a volta ao estômago.


Ai, sexo… Engraçado saber que a melhor arma contra este monstro era o simples pensamento de corpos suados entre lençóis suaves e se metesse sémen ou fluidos vaginais melhor


- Eh! Pára! Consegues ter uma mente mais nojenta que o meu covil.

- Obrigado Vergil. Sabes que tento ser por ti. – Respondi sorrindo. – Mas o que queres? Não me ias procurar só por masoquismo.

- Obviamente que não. – Vergil sacudiu-se como se tentasse afastar os pensamentos da própria pele. – Bem a Guelika quer falar contigo.

- E ela não me podia falar directamente? Tinha de me fazer suportar a tua presença?

- Sabes tão bem como eu que és a ultima pessoa que eu queria ver. Ainda por cima com… essa mente. – Replicou com desprezo, seguido de uma pausa e um suspiro. – Mas com a Guelika ninguém nega, ou acabamos a espumar sangue com os intestinos a serem desfeitos e com isso tudo ainda demoramos varias horas a morrer sem nos podermos mexer.

- De facto ela é uma senhora interessante. – Disse com um sorriso algo sonhador.

- Não quero saber dos teus pensamentos nojentos envolvendo aquela bruxa. Quero que saibas que ela quer falar contigo ainda antes da meia-noite. Diz que vai estar no Ambrósia à tua espera até à meia-noite. É melhor que vás lá antes disso ou já sabes o que te espera. – Falou mostrando o sorriso afiado.

- Como podes ver não estou nas melhores condições para fazer uma visita à bela Guelika. Por alguma razão que não entendo, a humidade apossou-se do meu belo corpo.

- Não me importa isso, não quero saber de nada que queiras dizer. O trabalho foi feito e podes fazer o que quiseres com a informação. – Ele calou-se e envergou pela rua escura falando apenas quando estava quase a desaparecer na noite. – Espero que seja desta vez que ela te corta mesmo.


Suspirei, o meu corpo começava a gelar e eu não tinha nada a fazer excepto ir ter com a Guelika, que infelizmente aquele parasita intestinal tinha razão. Não podia dizer não à Guelika. Era uma mulher de desejos macabro que precisavam de ser saciados ou todos nós é que sofríamos. Só espero que desta vez não envolva outra vez um sacrifício, juntar sangue à água é só a piorar (ainda me pedia para rebolar em esterco só para melhorar) e ao menos a água seca, o sangue cria questões.

Cheguei ao Ambrósia. A luz de néon azul brilhava por cima da porta escrevendo o nome do buraco causando um erro ortográfico de vindo ao R que decidia ter luz apenas durante uma questão de segundos. E porquê buraco? Porque começava com a bela entrada com um segurança com a bela combinação de óculos escuros e de t-shirt com as mangas cortadas, obviamente para acentuar a massa muscular que não era obviamente normal, no mínimo havia esteróides envolvidos. Depois para acrescentar à beleza de dito buraco, dois bêbados lutavam à frente do estabelecimento, que apesar da maioria dos golpes serem desastrados e tristes chapadas amaricadas eventualmente um ou outro acertava o seu oponente e ambos já jorravam sangue do nariz. E para finalizar o quadro, obviamente destinado às mais distintas galerias de arte, estavam duas mulheres de uma idade respeitosa, com trajes pouco respeitosos e com corpos que mais valiam estar escondidos do que apertados naquelas roupas tenebrosas, tentavam vender-se ao segurança para entrar no dito buraco.

Consegui ouvir um pouco da conversa quando me aproximei, mas era de tão baixo nível que não vale a pena repetir, apenas abstrair-me e anunciei que a Guelika esperava-me e foi-me aberta passagem para dentro.


- E nós não podemos entrar, é? – Bramiu a mulher com uma voz estridente e nasalada - É por causa destas coisas que o país está como está, uns têm cunhas, outros ficam a ver navios.


Parei e olhei para trás. Olhei as mulheres de cima abaixo e senti uma pequena náusea no fundo da garganta. Sem pensar duas vezes, soltei-a.


- Se decidissem apresentar-se como mulheres e não como putas talvez tivessem mais sorte.


Consegui ouvir uma exclamação de choque e o inicio de um insulto mas desvaneceu quando a música do “bar” invadiu os meus ouvidos.

A luz era quase inexistente, apenas os clarões das luzes da pista de dança iluminavam, ainda que precariamente, o interior daquela toca. Informei-me no barman onde podia encontrar Guelika e segui para encontra-la. Estava num camarim no segundo andar desta espelunca, acima do bar.

Quando entrei ela estava sentada, num banco, de costas para mim mas em frente a um espelho. Penteava lentamente e com cuidado o seu longo cabelo avermelhado enquanto um sorriso tracejado pelo batom escarlate olhava para mim com aqueles olhos cinzentos e penetrantes que tanta impressão me fazia. Mas o que trazia vestido é que era interessante. Um corpete roxo de laços negros que, com o cabelo afastado por cima do ombro mostravam-se visíveis, apertavam o corpete na sua cintura mas não no peito, tornando o seu decote um pouco mais, digamos, precário e unicamente para além do corpete, tinha vestido uma tanga de renda que muito dificilmente escondia-lhe o cu que parecia estar confortavelmente sentado na almofada do banco.


- Ainda bem que vieste. – Começou, como uma voz melosa que parecia querer gemer ao acabar a frase. – Pensei que ia ficar sozinha hoje.

- Lamento a demora, as minhas roupas estavam uma lástima e tive de ir trocar. – Respondi secamente tentando, mas falhando, em mostrar o meu desconforto.

- Estou a ver. Mas não há problema, podias ter tirado a roupa aqui.

- Obviamente que sim. Mas não quis causar maçada.

- Não causavas maçada nenhuma, sabes disso.

- Sei.


A bela da conversa que não ia a lado nenhum era um clássico da Guelika. Uma pessoa que não a conhecia de certeza que se sentiria perturbada por a demora nas suas palavras, que pareciam andar em volta de si próprias sem ir a lado nenhuma, mas eu não, eu só me sentia um pouco.


- Não entras? – Questionou pousando a escova do cabelo. – Anda, fecha a porta e ajuda a pentear-me.


Assim o fiz. Engoli a seco, ganhei coragem e avancei para ela. Peguei na escova e antes de a pentear passei a mão pelo seu cabelo.


- Parece seda. – Disse-lhe sem pensar.

- Obrigada. – Agradeceu ela como uma rizada genuína. Não sei se estava a gostar da reacção que me causava ou estava realmente lisonjeada. – Como tens passado? Há algum tempo que não te vejo.

- Tenho passado às mil maravilhas e tudo melhora contigo a chamares-me para aqui no meio de uma tempestade.

- Oh, não queria causar-te trabalho. – Desculpou-se a Guelika segurando na minha mão. Lentamente levantou-se e ainda agarrando na minha mão levou-a à sua cara. – Mas já que estás aqui, podíamos ir-nos divertir um bocado.


Olhei de soslaio para a cama dela à minha esquerda, que estava repleta de roupa, alguns ídolos heréticos e uns instrumentos que me faziam temer a sua utilidade.


- Hoje não, o cansaço destruiu-me a vontade e a humidade da chuva que apanhei deixou-me com ranho. – Tentei forçar um sorriso. - Sexo e ranho não me parece bem.

- Oh se é assim sempre podia matar-te e depois divertir-me com o teu cadáver. Rigor Mortis é sempre divertido. – Retorquiu com uma velocidade tenebrosa e uma expressão amuada. – Ou podemos simplesmente dormir agarradas.

- Tenho de admitir que a segunda opção parece-me melhor.


Acabamos na cama, ela com os braços em volta de mim e eu a olhar para o tecto. Não era a primeira vez que olhava para aquele tecto, mas também não seria a última. Muitas vezes o destino me levaria ali e eu não sabia se odiar ou se esperar com excitação por esses momentos. Mas uma coisa sabia, o futuro ou o passado eram irrelevantes quando eu tinha os seus dentes no meu ouvido, suspirando palavras doces que eu também tinha a perfeita noção que eram venenosas e que se as continuasse a ouvir acabaria por morrer.

Para minha benesse ela acabou por adormecer, deixando-me com o leve ressonar que lhe era característico. Para toda a sedução e medo que tentava instigar o momento em que adormecia fazia-a parecer mais humana.


Já não era mau…