quarta-feira, março 23, 2011

Os Nefastos

Tinha parado de chover, mas as minhas roupas já estavam ensopadas. Tinha encontrado um lugar onde me proteger das tempestade mas já tinha sido tarde demais, pingava por todo o lado e imaginava-me a espremer as roupas e com a água encher um bule e fazer um chá de camomila.


- Preferia um de limão e canela. – Opinou uma figura estranha ao meu lado.


Era uma criatura estranha de corpo corcunda, coberto por uma gabardina cinzenta, suportado com uma bengala que pouco parecia servir pois continuava bastante abaixo de mim, dedos ossudos e unhas compridas agarravam a bengala cravada com a escultura de uma cobra. Da minha posição podia ver-lhe o cabelo ralo e oleoso que formava como uma coroa em volta de uma limpa careca. O nariz pontiagudo espreitava de uma face cravada de rugas e pele caída que também albergava um par de olhos piscos e negros assim como lábios finos, quase inexistentes, que escondiam um sorriso macabro de dentes afiados.


- Já te disse para parares de fazer isso. Ou preferes que cada vez que estiver na tua encantadora presença não tenha mais nada que pensamentos um pouco devassos.

- Por favor não. - Suplicou com uma expressão de nojo. – Essas coisas dão-me a volta ao estômago.


Ai, sexo… Engraçado saber que a melhor arma contra este monstro era o simples pensamento de corpos suados entre lençóis suaves e se metesse sémen ou fluidos vaginais melhor


- Eh! Pára! Consegues ter uma mente mais nojenta que o meu covil.

- Obrigado Vergil. Sabes que tento ser por ti. – Respondi sorrindo. – Mas o que queres? Não me ias procurar só por masoquismo.

- Obviamente que não. – Vergil sacudiu-se como se tentasse afastar os pensamentos da própria pele. – Bem a Guelika quer falar contigo.

- E ela não me podia falar directamente? Tinha de me fazer suportar a tua presença?

- Sabes tão bem como eu que és a ultima pessoa que eu queria ver. Ainda por cima com… essa mente. – Replicou com desprezo, seguido de uma pausa e um suspiro. – Mas com a Guelika ninguém nega, ou acabamos a espumar sangue com os intestinos a serem desfeitos e com isso tudo ainda demoramos varias horas a morrer sem nos podermos mexer.

- De facto ela é uma senhora interessante. – Disse com um sorriso algo sonhador.

- Não quero saber dos teus pensamentos nojentos envolvendo aquela bruxa. Quero que saibas que ela quer falar contigo ainda antes da meia-noite. Diz que vai estar no Ambrósia à tua espera até à meia-noite. É melhor que vás lá antes disso ou já sabes o que te espera. – Falou mostrando o sorriso afiado.

- Como podes ver não estou nas melhores condições para fazer uma visita à bela Guelika. Por alguma razão que não entendo, a humidade apossou-se do meu belo corpo.

- Não me importa isso, não quero saber de nada que queiras dizer. O trabalho foi feito e podes fazer o que quiseres com a informação. – Ele calou-se e envergou pela rua escura falando apenas quando estava quase a desaparecer na noite. – Espero que seja desta vez que ela te corta mesmo.


Suspirei, o meu corpo começava a gelar e eu não tinha nada a fazer excepto ir ter com a Guelika, que infelizmente aquele parasita intestinal tinha razão. Não podia dizer não à Guelika. Era uma mulher de desejos macabro que precisavam de ser saciados ou todos nós é que sofríamos. Só espero que desta vez não envolva outra vez um sacrifício, juntar sangue à água é só a piorar (ainda me pedia para rebolar em esterco só para melhorar) e ao menos a água seca, o sangue cria questões.

Cheguei ao Ambrósia. A luz de néon azul brilhava por cima da porta escrevendo o nome do buraco causando um erro ortográfico de vindo ao R que decidia ter luz apenas durante uma questão de segundos. E porquê buraco? Porque começava com a bela entrada com um segurança com a bela combinação de óculos escuros e de t-shirt com as mangas cortadas, obviamente para acentuar a massa muscular que não era obviamente normal, no mínimo havia esteróides envolvidos. Depois para acrescentar à beleza de dito buraco, dois bêbados lutavam à frente do estabelecimento, que apesar da maioria dos golpes serem desastrados e tristes chapadas amaricadas eventualmente um ou outro acertava o seu oponente e ambos já jorravam sangue do nariz. E para finalizar o quadro, obviamente destinado às mais distintas galerias de arte, estavam duas mulheres de uma idade respeitosa, com trajes pouco respeitosos e com corpos que mais valiam estar escondidos do que apertados naquelas roupas tenebrosas, tentavam vender-se ao segurança para entrar no dito buraco.

Consegui ouvir um pouco da conversa quando me aproximei, mas era de tão baixo nível que não vale a pena repetir, apenas abstrair-me e anunciei que a Guelika esperava-me e foi-me aberta passagem para dentro.


- E nós não podemos entrar, é? – Bramiu a mulher com uma voz estridente e nasalada - É por causa destas coisas que o país está como está, uns têm cunhas, outros ficam a ver navios.


Parei e olhei para trás. Olhei as mulheres de cima abaixo e senti uma pequena náusea no fundo da garganta. Sem pensar duas vezes, soltei-a.


- Se decidissem apresentar-se como mulheres e não como putas talvez tivessem mais sorte.


Consegui ouvir uma exclamação de choque e o inicio de um insulto mas desvaneceu quando a música do “bar” invadiu os meus ouvidos.

A luz era quase inexistente, apenas os clarões das luzes da pista de dança iluminavam, ainda que precariamente, o interior daquela toca. Informei-me no barman onde podia encontrar Guelika e segui para encontra-la. Estava num camarim no segundo andar desta espelunca, acima do bar.

Quando entrei ela estava sentada, num banco, de costas para mim mas em frente a um espelho. Penteava lentamente e com cuidado o seu longo cabelo avermelhado enquanto um sorriso tracejado pelo batom escarlate olhava para mim com aqueles olhos cinzentos e penetrantes que tanta impressão me fazia. Mas o que trazia vestido é que era interessante. Um corpete roxo de laços negros que, com o cabelo afastado por cima do ombro mostravam-se visíveis, apertavam o corpete na sua cintura mas não no peito, tornando o seu decote um pouco mais, digamos, precário e unicamente para além do corpete, tinha vestido uma tanga de renda que muito dificilmente escondia-lhe o cu que parecia estar confortavelmente sentado na almofada do banco.


- Ainda bem que vieste. – Começou, como uma voz melosa que parecia querer gemer ao acabar a frase. – Pensei que ia ficar sozinha hoje.

- Lamento a demora, as minhas roupas estavam uma lástima e tive de ir trocar. – Respondi secamente tentando, mas falhando, em mostrar o meu desconforto.

- Estou a ver. Mas não há problema, podias ter tirado a roupa aqui.

- Obviamente que sim. Mas não quis causar maçada.

- Não causavas maçada nenhuma, sabes disso.

- Sei.


A bela da conversa que não ia a lado nenhum era um clássico da Guelika. Uma pessoa que não a conhecia de certeza que se sentiria perturbada por a demora nas suas palavras, que pareciam andar em volta de si próprias sem ir a lado nenhuma, mas eu não, eu só me sentia um pouco.


- Não entras? – Questionou pousando a escova do cabelo. – Anda, fecha a porta e ajuda a pentear-me.


Assim o fiz. Engoli a seco, ganhei coragem e avancei para ela. Peguei na escova e antes de a pentear passei a mão pelo seu cabelo.


- Parece seda. – Disse-lhe sem pensar.

- Obrigada. – Agradeceu ela como uma rizada genuína. Não sei se estava a gostar da reacção que me causava ou estava realmente lisonjeada. – Como tens passado? Há algum tempo que não te vejo.

- Tenho passado às mil maravilhas e tudo melhora contigo a chamares-me para aqui no meio de uma tempestade.

- Oh, não queria causar-te trabalho. – Desculpou-se a Guelika segurando na minha mão. Lentamente levantou-se e ainda agarrando na minha mão levou-a à sua cara. – Mas já que estás aqui, podíamos ir-nos divertir um bocado.


Olhei de soslaio para a cama dela à minha esquerda, que estava repleta de roupa, alguns ídolos heréticos e uns instrumentos que me faziam temer a sua utilidade.


- Hoje não, o cansaço destruiu-me a vontade e a humidade da chuva que apanhei deixou-me com ranho. – Tentei forçar um sorriso. - Sexo e ranho não me parece bem.

- Oh se é assim sempre podia matar-te e depois divertir-me com o teu cadáver. Rigor Mortis é sempre divertido. – Retorquiu com uma velocidade tenebrosa e uma expressão amuada. – Ou podemos simplesmente dormir agarradas.

- Tenho de admitir que a segunda opção parece-me melhor.


Acabamos na cama, ela com os braços em volta de mim e eu a olhar para o tecto. Não era a primeira vez que olhava para aquele tecto, mas também não seria a última. Muitas vezes o destino me levaria ali e eu não sabia se odiar ou se esperar com excitação por esses momentos. Mas uma coisa sabia, o futuro ou o passado eram irrelevantes quando eu tinha os seus dentes no meu ouvido, suspirando palavras doces que eu também tinha a perfeita noção que eram venenosas e que se as continuasse a ouvir acabaria por morrer.

Para minha benesse ela acabou por adormecer, deixando-me com o leve ressonar que lhe era característico. Para toda a sedução e medo que tentava instigar o momento em que adormecia fazia-a parecer mais humana.


Já não era mau…

2 comentários:

Nerzhul disse...

Como não referiste o nome da personagem principal, vou-lhe chamar Geribalda para efeitos deste comentário.

A Geribalda é lésbica. Lésbicas são senhoras que se sentem atraídas por outras senhoras. O varg noutra vida era uma mulher como a Geribalda e é por isso que agora possui um alter-ego em que é, mais do que uma vez, o narrador participante de uma história cuja personagem principal é uma senhora que se sente atraída por outras senhoras.

Não há mal nenhum nisso e eu acho particularmente interessante de se ler.

Isso ou a Geribalda é hermafrodita e nesse caso dever-se-ia chamar Susete. Mas isso já não é comigo.

Anónimo disse...

yep?