quarta-feira, março 30, 2011

Os Nefastos

Parte 1

Acordei. Os meus olhos sentiram dificuldade em habituar-se à luminosidade. Via tudo desfocado mas apercebi-me que não estava no mesmo lugar. Agora encontrava-me numa cadeira, num cubículo de pequenas dimensões com um foco de luz directamente à minha frente. Lentamente comecei a aperceber-me de onde estava quando os meus olhos habituaram-se à luz e consegui ver a silhueta a dançar à minha frente. Não quis acreditar e levei as mãos à testa, não tinha a lógica nenhuma eu ter deixado a Guelika para vir aqui, muito menos a hipótese de ela ter-me posto aqui por diversão. Conforme a minha visão se habituou, consegui ver as formas da musa que se movia à minha frente que balançavam lenta e gentilmente ao som de uma música que parecia estar gravada na minha cabeça. Ainda não acreditava que estava ali outra vez, mas já que tinha pago, ou alguém tinha pago por mim, aproveitei o espectáculo até ao fim.

A música acabou e a sua dança cessou, ela ajoelhou-se à minha frente, soprou-me um beijo e ficou a olhar-me nos olhos com um sorriso na cara. Eu também não desviei o olhar conforme a porta se fechava diante nós e aquelas duas esferas azuis como o mar desapareciam perante elas. A porta fechou e eu enfiei a cabeça entre as pernas, suprimindo um grito. Sai do cubículo e tentei entender onde estava. O cheiro forte a tabaco e as paredes pintadas a castanho com posters das “artistas” colados com fita-cola era uma visão conhecida. Estava no “Abraço das Serpentes”, o bar de strip barra peepshow mais reles cá do sítio. Eu já tinha frequentado este sítio, mais vezes do que era saudável, mas já tinha passado muito tempo desde que eu vinha aqui, mesmo muito e ainda não conseguia entender porque raio estava eu aqui outra vez.

Foi então que reparei num par de olhos grandes e amarelos no canto da sala a olhar para mim. Uma criatura olhava para mim com um esgar de satisfação. Não sabia quem ele era mas ele parecia conhecer-me a mim. Avançou até mim. Fato branco e calças a condizer, com uma gravata azul. Pele verde e escamosa, dois lábios quase inexistentes e uma careca que parecia ter sido polida e brilhava nas luzes do estabelecimento. Ele sorriu para mim com uma fileira perfeita de dentes brancos e estendeu uma das suas mãos reptilianas em cumprimento.


- Daniel Leudovico, ao seu dispor. – Apresentou-se quando lhe apertei a mão. – E você não precisa de dizer quem é, já ouvi dizer muito boas coisas ao seu respeito.

- Muito prazer. Mas lamento se não o conheço. – Respondi com a mente ainda mais confusa.

- Ora bem, eu sou o proprietário deste estabelecimento. Quer dizer, o novo proprietário.

- Novo?

- Não soube? O Marco faleceu a semana passada. Eu era o sócio dele e assumi o seu cargo e tenho de admitir que até é um buraco acolhedor. – Informou-me mantendo sempre o sorriso que fazia parecer que queria vender algo.

- E tem o hábito de cumprimentar pessoalmente todos os seus clientes. – Respondi, sentindo-me mais ciente de mim.

- Por amor de Deus não! – Clamou benzendo-se. Ri-me dele ao ver fazer aquele gesto, era adorável ver o dono de um lugar destes como um devoto. - Não Já viu a maioria das pestes que frequentam este local? A maioria deles, nem sei onde andam com as mãos, já para não falar dos ninhos de doenças que são. Não, eu guardo a minha presença para criaturas mais ilustres, como você.

- Como eu? – Disputei com estampando o meu sarcasmo na cara. – Desculpe-me se eu não devoro inocentemente todos os retalhos de prezes que me lança. Eu não gosto de confiar em qualquer estranho que oferece-me a sua mão.

- É justo. – Respondeu o lagarto com uma expressão solene. – Mas fique a saber que e tenho conhecimento que fez alguns favores ao Marco. Talvez, eu necessite de alguma ajuda no futuro.

- Pois, já imaginava que fosse algo assim. O que é curioso estar-me a pedir, quando eu não me recordo sequer como vim para aqui. – Disse tentando sondar a reacção dele, que para meu desapontamento foi uma de confusão e surpresa.

- Veio para aqui com os seus próprios pés. Eu próprio vi a sua entrada.

- Está bom. – Esfreguei a cara e suspirei. – Tem sido uma noite interessante.

- Pois bem, permita-me que a torne ainda mais interessante. A Nadja pediu-me a sua companhia.

- Ela ainda trabalha cá?

- Sim e quando descobriu que estava cá quis imediatamente ser escolhida para seu prazer.

- Reparei nisso. – Lembrando-me da pequena dança que tinha desfrutado assim que acordei.


Vi ela a olhar-me pelo canto do corredor que levava até aos camarins das “artistas”. Atentos aos meus movimentos os seus dois grandes olhos azuis observaram-me a aproximar-me dela.

Quando estava perto, ela agarrou-me pela mão e levou-me rapidamente para a sala onde as senhoras se preparavam para os seus espectáculos. Lá dentro elas vestiam-se em roupas reduzidas e, ou fantasiosas, arranjavam a maquilhagem e gritavam umas com as outras, trocando insultos e mexericos. A Nadja levou-me pelo meio daquele mar de mulheres que me olhavam de relance e rapidamente perdiam o interesse. No meio daquela pressa algo correu mal. A minha mente turvou e uma sensação de tontura, de deslocação deturpada apossou-se de mim. Pareceu que caminhamos por horas e então deparei-me em frente a Nadja, no meio da rua, numa noite chuvosa.


- Obrigado por me trazeres a casa. – Disse ela debaixo da chuva com o seu olhar penetrante e doce cravado no meu.


Olhei para a esquerda e vi um prédio opressivo, de cor escura como a noite e varias luzes amarelas fugindo de algumas das janelas. A chuva continuava a cair.


- Como é que…? – Comecei mas interrompendo-me a meio da questão e rendendo-me à loucura. – Não tens de quê.

- Sabes? Eu gosto de ti, não és como todos os outros pervertidos… - Disse comovida. Apesar da chuva, consegui entender que chorava. – Tu vens e aprecias o espectáculo, a arte, aprecias-nos e aprecias-me. Não como todos os outros tarados que vêm-nos apenas como pedaços de carne, como auxílios à sua masturbação arfando como cães nojentos.

- Mas se tu não gostas desta vida, porque não mudas? – Perguntei eu com uma inocência que até me meteu nojo poucos segundos depois de a ter dito.

- E o que faria eu para alem disto? – Perguntou ela com o seu sorriso doce mas este também possuía um travo amargo. – Não sei fazer mais nada. A minha vida é isto. Agradeço-te pela companhia mas…

- Tens que sair da chuva para não te constipares. – Interrompi sorrindo-lhe.


Ela abraçou-me e despediu-se entrando no apartamento. Pouco tempo depois de desaparecer por entre a bocarra daquele monstro de pedra e cimento as luzes do seu interior apagaram-se. Um trovão rugiu por cima da minha cabeça, de repente parece que começou a chover outra vez. Mas agora havia algo estranho nesta chuva, era mais pesada, mais forte. Foi então que levantei as minhas mãos à altura da minha face e vi nelas as gotas a baterem e eram negras, negras como petróleo. Aquela chuva de escuridão foi rapidamente invadindo as ruas e cobrindo os edifícios e repentinamente tudo foi varrido. Tudo foi limpo pela escuridão que invadiu o mundo.

Abri os olhos com o coração a querer escapar-me pela garganta. O ouvi o ressonar característico da Guelika ao meu lado e o meu coração amansou. No entanto a imagem da Nadja não me saia da cabeça. Temi que algo se passasse com ela, não sou de acreditar em sonhos proféticos ou nada disso, mas talvez o facto de não ver a rapariga há algum tempo estava a deixar-me com preocupações que não devia.

Suspirei e tentei voltar a adormecer, mesmo com a irrequieta preocupação de que algo podia estar a passar-se de errado com a Nadja. Foi então que ouvi a chuva lá fora, a bater nas janelas, no tecto, nas paredes. Um arrepio percorreu-me a espinha e uma sensação de angústia apossou-se de mim.

A Guelika moveu-se um pouco no seu sono e estreitou o seu abraço como se tivesse apercebido da minha aflição. Suspirei outra vez sob o abraço desta filha de Hékate, independentemente dos possíveis feitiços que ela tinha metido em cima de mim, parecia que me acalmava como queria.


O que estou eu a pensar? Parece só que estou a encher a minha mente de palha…



Enfim…

1 comentários:

Nerzhul disse...

Inspiraste-me! Rulas!