quarta-feira, abril 06, 2011

Os Nefastos

Parte 2

Parte 1

Acordei. Os meus olhos não demoraram muito a habituar-se à escuridão. Ainda devia ser cedo, visto que a Guelika continuava a dormir e ela era mulher de se levantar com as galinhas. Ergui-me da cama, mas mantive-me perto dela. Passei-lhe a mão pelos seus cabelos castanhos enquanto lembrei-me do sonho que tinha tido. Lembrei-me da última vez que tinha estado com a Nadja e da maneira que nos separamos. A mesma angustia que tinha sofrido no nosso último encontro começou a apossar-se de mim outra vez, mas quando o desconforto ameaçava apossar-se totalmente de mim e o meu pensamento começava a tomar a forma de abandono daquele local a Guelika estremeceu, virou-se na minha direcção e abriu os olhos ainda sonolentos. Ela não sorriu nem falou, apenas cravou em mim aqueles olhos penetrantes e como se perscrutasse a minha alma questionou:


- O que se passa?

- Tive um sonho. – Respondi, sentindo como se algo me sufocasse.

- Foi Ele? – Interrogou-me com os olhos franzidos e uma faísca de raiva dentro deles.

- Não… Pelo menos eu acho que não. Sonhei com a Nadja.


A sua cara mudou, a raiva transformou-se em pena e tristeza. Odiei-a por sentir pena de mim.


- Não me olhes assim! Não sou nenhum bebé que precises de amamentar. – Cuspi.

- Passaram-se dois anos! Dois! E tu ainda reages assim? – Gritou continuando com um semblante triste.

- Podiam ter sido vinte anos! Nunca me vou perdoar por o que fiz.

- Não tiveste escolha! – Tentou argumentar mas as palavras morreram na sua garganta quando o quarto pareceu-se iluminar. – Desculpa.

Não me apeteceu falar. Abracei-a e fiz-lhe o favor. Trocamos um beijo demorado e depois estreitei o abraço. Passado um pouco expliquei-lhe o sonho, que ela ouviu com atenção sem uma única vez atrever-se a conjecturar sobre o seu significado, depois falamos de coisas sem interesse, do passado e do futuro e a minha mente pareceu aliviar. Nunca sabia se era um efeito natural que a Guelika tinha sobre mim ou se fazia parte das suas bruxarias a serenidade que ela me podia oferecer apenas falando comigo.

Decidimos que o nosso momento de serenidade tinha de acabar. Ela precisava de tratar dos assuntos do bar e eu precisava de ir visitar a Nadja, ainda que lhe tivesse ocultado que o ia fazer. Descemos e deparamo-nos com o seu empregado, um homem alto de pele escura e face carrancuda. Normalmente um homem de mau humor e que me parecia não gostar muito de mim.


- Bom dia. – Cumprimentou ele secamente.

- Bom dia sorridente. – Trocei eu com um sorriso de orelha a orelha. – Aw, tu ai a carregares essas grades de cerveja pareces um ursinho adorável a trabalhar.

- Cuidado do que falas, ainda vais acabar por ter de engolir algumas palavras. – Respondeu ele calmamente mas com a sua tão afamada voz dura.

- No dia em que eu tiver de engolir palavras, eu juro que vais engolir os teus próprios dentes. – Repliquei rapidamente e ainda com o mesmo sorriso na cara.

- Silencio! Ambos. – Gritou a Guelika depois apontou para mim. – Vai-te embora, agora preciso de trabalhar e não quero que estejas a interferir com os meus empregados.


Anui e abandonei o edifício. Quando cheguei à rua as nuvens ainda estavam carregadas e cobriam o céu, deixando o sol brilhar apenas por pequenos rasgos. Eu soube nesse instante que não voltaria a casa sem antes me encontrar outra vez ensopada pela chuva e não seria por falta de velocidade. Não fui directamente para casa. Antes disso passei pelo café da senhora Matilde. Uma velhota simpática que servia café e bolos a meia cidade sempre com um sorriso na cara. Ela reparou que eu não me encontrava do melhor dos humores e tentou descobrir o que eu tinha por três vezes com palavras doces, piadas sobre os alimentos que ela entregava e o típico dialogo sobre o tempo. Mas eu nem uma vez cedi, sabia melhor do que entregar as minhas preocupações à maior coscuvilheira deste lado da cidade, uma única palavra errada que a minha língua quisesse dizer e espalhar-se-ia pelas ruas que nem fogo num dia quente de verão num bosque de pinheiros.

Depois de me alimentar sai dali. Sabia para onde tinha de seguir mas demorei a chegar lá, andei por ruas intermináveis, fazendo um zig-zag pela cidade, quanto mais tempo demorasse melhor. Mas eventualmente, acabei por me deparar com o meu destino. Um grande portão enferrujado e entreaberto convidava-me a entrar. Uma caveira no topo do arco de ferro que ligava as duas colunas parecia observar-me com as suas órbitas vazias. Só faltava um corvo guinchar numa árvore próxima para completar a imagem caricata da minha situação.

Entrei pelo portão que rangeu suavemente quando o afastei. Prossegui pelo caminho de pedra onde criptas ostentosas flanqueavam-me de ambos os lados até chegar às mais modestas tumbas. Lá procurei uma lápide enegrecida que eu já não visitava há muito tempo. Quando a encontrei ajoelhei-me à sua frente. Passei as mãos pela terra molhada pela chuva e fechei os olhos tentando evitar as lágrimas ao ver a foto que se encontrava cravada na lápide. Aquele sorriso puro nunca mais aqueceria este mundo, aqueles olhos brilhantes nunca mais nos iluminariam com a sua inocência. Respirei fundo e tremulamente abri os olhos.


- Eu vi-te hoje. – Falei na esperança que alguém me ouvisse. – Não sei se me querias dizer algo, ou se estavas a tentar avisar-me de algo. Mas sei que eras tu.


Um trovão ouviu-se em cima da minha cabeça.


- Eu sei que eras… - Parei quando a agonia apossou-se da minha fala. Nem por um segundo queria que a tristeza transparecesse na minha voz. - … Tu foste tão boa para mim e foi assim que eu te paguei. Desculpa-me.


O céu rugiu outra vez anunciando o iminente dilúvio.


- Desculpa-me por o que te fiz, desculpa-me por nunca te ter vindo visitar. – Olhei para a dedicatória cravada na pedra que dizia “Aqui jaz Nadja. Amada filha e devota amiga.” E lutei outra vez contra a tristeza que me tentava assolar.

- Se pudesse voltar atrás eu…

- Tu não terias feito diferente. – Interrompeu-me uma voz cavernosa e severa.

- Não sabes do que falas. – Disse transformando a minha agonia em raiva e transparecendo-a com um sorriso. – Se ela pudesse continuar viva…

- Ela não podia. E tu sabes que não. – A voz insistiu. – Era o seu destino, era a tua prova e tu tinhas de a passar.

- Tinha de a passar ou o quê? Não tinha direito a esta merda de vida? Se não o tivesse feito teria eu tomado o seu lugar e talvez, apenas talvez este mundo fosse melhor. – Bufei para o meu atormentador.

- Não fales do que bem sabes ser mentira. – Respondeu-me rispidamente. Eu senti a sua voz a aproximar-se e a sua sobra a tapar-me. – Não tinhas outra opção. Ele tinha de ser travado.

- Ele?! Ele?! As únicas coisas que vi nos olhos dela foram confusão e tristeza por não saber a razão por o qual eu o tinha feito e de certeza que não o vi a “Ele”.


Levantei-me e virei-me repentinamente para confrontar o meu atormentador, mas antes de lhe poder olhar nos olhos o vulto que me suprimia com a sua sobra transformou-se num bando de corvos que rapidamente dispersaram rapidamente soltando guinchos repetitivos como se gozassem comigo.


- Maldito sejas mais a merda do teu destino. – Gritei com fúria.


Nesse preciso instante o céu lançou o seu dilúvio sobre mim. Segundos passaram onde eu revi tudo o que me tinha acontecido nestes últimos anos, mas não fiquei triste, não me senti entregue ao desespero, simplesmente ri-me. Ri-me à gargalhada. E assim finalmente tinha completado a figura que tinha ficado perfeitamente pintada: Um cemitério, chuva, corvos e uma criatura desvairada a rir-se loucamente.

2 comentários:

Nerzhul disse...

Eu li isto na altura, mas por alguma razão esqueci-me de comentar. Deve ter sido porque estava extremamente ocupado a terminar um post certamente.

A parte da série que mais gostei até agora foi a parte 2, mas adorei o final desta parte.
O que gosto nesta história é a sensação de não estar a perceber nada do que está a acontecer, a única coisa que sei é que qualquer que seja o bicho mitológico marado que é a Geribalda, ela é a versão lésbica desse bicho mitológico.

Dito isto, volto a afirmar que rulas, que quero a sequela disto e que se isto tudo no final fizer sentido................ ainda rulas mais. Essencialmente é isso.

Anónimo disse...

yep