terça-feira, junho 05, 2007

Saga Da Lua

Sementes de Melancolia

As dúvidas começavam a ser ainda mais fortes conforme o sol fazia o seu longo e demorado caminho pelo céu, não me deixavam vê-la, falavam-me que o seu sangue tinha despertado e que precisava de ser limpo. O Yorgsh mantinha-se num silêncio mortificante e numa tristeza imensa, enquanto que a sua esposa era movida por um ódio desconhecido e á muito adormecido, fazendo-a organizar toda a cerimónia que cada vez mais me parecia mais como uma execução pública.

“Para o bem da Unga e para que esta cerimonia corra bem, ela não pode ter contacto nenhum com o exterior durante 5 dias, tem de permanecer na tenta cerimonial e deixar o seu corpo sucumbir, enfraquecendo assim os agentes do mal que residem dentro dela”

Foi isto que Urnia me disse para me afastar, para me manter controlado, mas tudo parecia estar a correr mal, cada vez sentia mais que algo estava errado. Porque é que até á altura tudo estava bem e depois da morte dos dois rapazes esta vida que parecia simples caiu em desgraça? Que acusações foram aquelas que a Urnia lançou a Kandia e as que esta por sua parte lançou á sua sobrinha? Não fazia sentido nenhum, não conseguia entender o que se passava e já que ninguém me dava as respostas, decidi eu ir procurá-las. Esperei até o sol se pôr, diverti-me a contar quantos pelos tinha no corpo e correr atrás de galinhas e outros animais inferiores como um simples cão, mas quando o momento chegou, esgueirei-me pela atenta vigia dos dois guardas que estavam a emitir sons ameaçadores de roncos e consegui entrar na tal tenda. Podia dizer que não esperava o que vi, mas tal coisa nunca passaria pela cabeça de ninguém, dentro daquela pequena casa de palha, apenas se encontrava lá uma escadaria feita em pedra que abria passagem para o interior da terra. Desci esses degraus e senti o ar húmido e abafado da terra, avancei pela gruta que parecia ter sido escavada á muitos anos atrás, os corredores estavam repletos de estranhas figuras monstruosas esculpidas na própria terra, flamingos, ursos, um esquilo ou outro e umas coisas que pareciam o cruzamento entre uma codorniz, uma tartaruga e uma barra energética. Essas figuras iluminadas por várias tochas emitiam sombras aterradoras que envolviam a gruta – sim, sombras ainda mais aterradoras que as próprias estatuas – fazendo-me arrepiar o pelo. Estalactites desciam do tecto ameaçando cair a qualquer altura no chão daquela caverna e conforme eu ia avançando, o ar ficava mais abafado e difícil de respirar e um suave calor emanava do chão. Eu estava a deixar-me embalar por todos esses sentidos até que cheguei ao meu destino, no centro de uma enorme sala estava uma pedra, acorrentada a essa pedra estava a Unga, coberta com alcatrão que lhe desenhava estranhos padrões na pele, a pele em volta dessas marcas estava queimada e os seus olhos estavam vermelhos, cheios de dor e tristeza jorravam lágrimas que escorriam como um rio, constantes e imparáveis. Eu aproximei-me com as patas trémulas de emoção, pisando num chão banhado com pétalas de flores, que pareciam querer dar um ambiente festivo ao espectáculo grotesco que era este ritual. Cheguei perto da Unga, senti o cheiro intoxicante do alcatrão misturado com o aroma perfumado das flores e o odor da carne queimada, parecia que queria entrar em pânico mas uma força superior controlava-me a manter a serenidade superficial e tive de esforçar-me ainda mais quando ela olhou para mim, com os olhos pesados e avermelhados de tanto chorar.

- Skor, desculpa…
- Estás a pedir desculpa de quê? A única pessoa que devia pedir desculpa era a tua mãe por te ter condenado a isto. – Enquanto falava desloquei-me para perto das correntes que prendiam os seus braços e tentei arrancá-las com os meus dentes.
- não te esforces Skor, essas corrente são abençoadas, por mais que tentes não as conseguirás partir. – Elas provavam-se difíceis de arrancar, que eu nem queria pensar em quebrar. E assim desisti.
- Mas Unga, isto é tortura, o que estás a sofrer não se justifica!
- Justifica-se sim lobinho. – Apesar da dor que ela passava a sua voz suou doce como sempre. – O meu sangue não é puro, devo sofrer estas provas… porque se não…
- Tu não acreditas no que estás a dizer! Passar por isto? Para? Para quê?

Ela começou a chorar mais fortemente e eu reparei que tinha tocado numa ferida.

- Não! Não acredito! – Gritou ela – Isto é bárbaro e eu amo a minha família, nunca lhes faria nada de mal! Mas no entanto eles insistem nisto. Como os posso perdoar?

Os seus gritos não são ouvidos somente por mim, pois os guardas roncantes, mais Urnia apareciam por trás de mim e agarravam-me enquanto a matriarca gritava:

- Como te atrevestes a profanar este santuário, criatura desprezível! – Pelo que parece ela tinha mudado muito desde a primeira vez que a tinha visto. – Irás ser exilado desta aldeia, nunca mais quero ver esse focinho nojento á minha frente.
- Skor! Não lhe façam isso! Não me deixes! – Gritou a Unga com um desespero e dor na voz que até a mim me feriu só de ouvir, mas no entanto a sua mãe estava insensível e completamente abstraida da dor da filha.

Fui arrastado, puxado pelo pêlo por entre as paredes horripilantes da gruta, pelas ruas empoeiradas da aldeia como um troféu de caça ou de guerra, fechei os olhos e abstrai-me da realidade, por esses momentos em que o meu corpo batia em pedras, o meu pêlo era arrancado e a minha pele rasgada, fechei os olhos á multidão que olhava em choque, ás mentiras que eram cuspidas da boca da Undria, da dor, mas não de uma coisa, de que maneira fosse, eu iria soltar a Unga.
Senti o meu corpo a ser elevado e depois projectado, abri os olhos no momento errado, pois a única coisa que pude ver foi terra antes de embater contra ela, rebolei pelo chão e quando parei consegui levantar-me, sentia-me dorido mas isso não chegou.

- Vai! E nunca mais voltes rafeiro!

Engraçado que quem desta vez falava não era Undria mas sim Torg, parece que ele não tinha perdido tempo em deixar o que fazia para me ver cair em desgraça com um sorriso de vitória na cara.

Derrotado e humilhado, levanto-me e começo a afastar-me da aldeia acompanhando, se bem que a uma certa distancia, por Yorgsh, silencioso como nunca o tinha visto antes após estes acontecimentos. Algo enervado pela sua perseguição e também um pouco por nada ter feito para me defender viro-me para trás e confronto-o.

- Porque me segues? Pensei que vocês tinham deixado bem claro que não me queriam na vossa aldeia.
- Nos? – Diz o Yorgsh pausadamente, agora é que eu reparava que ele estava debilitado e os anos pesavam bastante nos seus ombros. – Devo-te relembrar caro lobo, que também a Unga é uma de nós e no entanto vistes como ela está a ser tratada.
- Não aprovas, estou a ver.
- Não! É claro que não aprovo, é a minha filha e se o Broko não recuperar, será a minha única descendente.
- Então porque permitiste isto? Porque deixaste que ela fosse torturada daquela maneira?
- Silencio – Interrompe-me ele com um tom de voz ferido. – Se procuras respostas vai ter com a minha irmã.
- Mas ela foi banida da aldeia pela tua… - de repente notei que este era o objectivo de Yorgsh aqui - espera lá o que me estás a querer dizer?
- Há uma presença maligna sobre nós e temo que ela se tenha apoderado da minha amada, mas como disse a minha irmã poderá dizer-te mais sobre isto.
- Mas… para… tu sabes para onde ela foi?
- Ela sempre foi uma bruxa e sempre será uma bruxa, terra é onde andamos, ar é o que respiramos, fogo ela sabe fazer muito bem… agora água… segue o cheiro a água Skor e encontrarás o que procuras… – Ao dizer isto ele começa a afastar-se enquanto eu continuo a fixa-lo, nem sabendo com que intuito, ou o que fazer. E ele acaba por terminar a sua frase – E com sorte, talvez salves a minha filha.

Estas palavras não me ajudaram nada, “segue o cheiro da água, onde é que isso me irá ajudar?” pensei, eu nem sequer sabia que a água tinha cheiro. Porque é que estas personagens típicas de histórias épicas só sabem falar em charadas.

Mas não tinha outra escolha, comecei a farejar o ar em busca do cheiro a água e de tão concentrado que estava nessa busca acabei por entrar na floresta de onde apareci, andei ás voltas pela densa folhagem, que talvez não fosse tão má se eu apenas me pudesse levantar e caminhar como um troll. Mas talvez por sorte ou mesmo por destino acabo por voltar ao mesmo lago onde me vi pela primeira vez, privado de memórias e um lobo que fala… também o mesmo sitio onde encontrei a Unga… os pensamentos podiam me perturbar a mente mas mantinha-se o facto que agora se encontrava uma casa perto do lago, feita em madeira, mas não construída, parecia que a própria natureza tinha se dobrado para formar aquela casa era tosca, mas robusta, parecia ser feita apenas das raízes das grandes arvores daquela floresta, tinha uma pequena chaminé que fumegava e uma luz saia das janelas. Como se isso não chegasse para comprovar que estava lá alguém, gritos, injúrias e outro tipo de lamentações ecoavam de lá de dentro.

Eu corri para a casa, com medo do que pudesse acontecer á minha fonte de informação, mas quando cheguei deparei-me com uma discussão algo… estranha. A Kandia estava a discutir com uma mulher algo bizarra, era bem mais baixa que a Kandia, estava vestida em túnicas negras, tinha a pele cinzenta, os seus dedos pareciam transformados em garras, tinha o cabelo negro com um tom pouco natural de azul, os seus olhos brilhavam numa cor amarela brilhante, como se fosse um fogo que queria escapar do interior do seu crânio. Ao eu entrar ela olha para mim e o seu rosto ganha uma expressão algo aflita e então continua a sua discussão.

- Estás a ver? Até a porcaria da fauna está a sentir este cheiro, não foi isto que eu te tinha pedido.
- Minha querida amiga, eu só te ajudei a concretizar o teu ultimo desejo e alegra-te, és tu mesma que o vais realizar, não nenhum terceiro. E para alem do mais, o Skor é inofensivo.
- Ah, então ainda por cima é teu animal de estimação. – Com esse comentário, a Kandia solta uma valente gargalhada.
- Eu não sou animal de estimação de ninguém – Replico, deixando a estranha mulher a olhar algo chocada para mim. – Quanto menos inofensivo.
- Ele fala. – Diz a mulher olhando em alternância para mim e para a Kandia. – O lobo fala.
- Claro que fala, tu também falas não é? – Responde-lhe a Kandia.
- Sim, mas…
- Chega de mas e meios mas, Kandia, o Yo… - interrompo
- Sim, eu sei Skor, o Yorgsh mandou-te vir ter comigo pois julga que eu tenho informações que te possam ajudar a salvar a sua filha, ora bem, entra e eu vou-te dizer tudo o que sei. Tu senta-te Kaly.

Aparentemente Kaly era o nome da mulher que se encontrava com a troll. Fiz como ela disse entrei e sentei-me perto da lareira da casa, a humidade da floresta colava-se ao pelo e eu sentia-me algo fresco demais com isto, a Kaly sentou-se num pequeno banco, quase afundando a sua cara entre as pernas puxou o cabelo para trás e respirou fundo, enquanto isto a Kandia pegou num cachimbo, enche-o de ervas e acendeu-o, sentou-se em cima da sua mesa e puxou o fumo do seu cachimbo esperando um largo espaço de tempo antes de o expirar. Parece que se sentia pronta para falar.