segunda-feira, setembro 08, 2008

Saga da Lua

Guerreira Lobo

As expressões no espelho continuavam a ser-me estranhas, mas cada vez mais me familiarizava com elas. Eu ia passando o cabelo de um lado para o outro, tocando no meu rosto e sentido as minhas próprias mãos. Tudo aquilo era demasiado estranho para mim, ainda á poucas horas era um lobo e agora era humana, a sensação de mudança era incrível e algo confusa, as minhas pernas tremiam e os movimentos eram desajeitados, ainda não me habituara. Enquanto eu tentava entender esta nova forma de ser, a Xana, já aborrecida com a minha lentidão a interiorizar o meu novo estado, soprava incessantemente a franja que acabava sempre por voltar ao mesmo local.

- E agora? – Perguntei eu enquanto fazia sombras de animais com as mãos.

- Agora fazes o coelho. Precisas de esticar o do meio e o indicador para fazer as orelhas…

- Não, não é isso. – Interrompi. – Quero saber o que faço agora, em relação aos Trolls. Para alem do mais, o coelho já fiz.

- Ah, esses! Pois, tinha-me esquecido que tu fizeste tudo isso por causa deles… ou melhor… dela. – Ela deu uma gargalhada trocista fazendo-me cerrar os punhos com raiva.

- Cala-te.

- Oh não, não me leves a mal claro, é que, dantes pelo menos eram de sexos opostos, agora nem isso, já não chega o problemazinho da raça! – Continuou ela por entre um rizo de escárnio.

- Cala-te! – Gritei já com os olhos baixos e com a raiva a queimar as minhas veias.

- Tu não sabes a sorte que tens… - afirmou Xana acabando por controlar os risos. – Se fosse por mim, já tinhas um cristal de gelo no teu coração. E jazias morta por tamanha insolência. Mas as minhas irmãs iriam acabar comigo caso isso acontecesse.

- Eu não seria morta por alguém como tu! – Rosnei, virando-me depois para ela e continuando. – Eu tenho uma missão! Eu vou salvar a Unga!

Este ultimo grito trespassou a minha mente e a realidade, a fúria que eu senti congelou-me mais do que o frio do coração da mulher que estava perante mim. Aquele sentimento, aquela sede, eu estava com medo de mim mesma, era uma raiva que eu não tinha controlo, que se movia dentro de mim insaciável e voraz, ansiando por ser liberta, após vários anos de hibernação. A Xana viu a minha expressão de espanto e sorriu, esse sorriso tornou-se num pequeno riso, e esse riso transformou-se em gargalhadas. Enquanto ela se ria começou a elevar-se, a flutuar dentro da caverna até se estacar a meia altura. Olhou para mim com o seu sorriso cristalino e repleto de loucura, os seus olhos azuis tinham-se transformado em vigorosas chamas dessa mesma cor, e o seu cabelo ondulava descontroladamente como se fosse fogo.

- Agora entendeste. Acorda conquistadora! O teu caminho ainda está para ser feito com o sangue dos teus inimigos. – Ela ergueu a cabeça e os braços perante o meu olhar esgazeado. – É a hora! O caminho a percorrer está aos teus pés! Deixa esse sentimento ser o teu guia e goza de todo o momento de prazer por ele oferecido.

Com o discurso finalizado ela irrompeu em risos e a sua forma foi ficando mais espectral até que com um rizo prolongado a sua forma lança-se contra o tecto perfurando-o e desaparecendo. Segundos depois o tecto tremeu e um grande bloco de gelo caiu no chão rachando-se em dois. Os meus olhos abriram em espanto quando me deparei com o que se encontrava perante mim. Dentro do cristal de gelo que se quebrou estava uma espada, cabo negro e trabalhado com rigoroso detalhe, com duas cabeças de lobo, cada uma virada para o seu lado, rosnando ferozmente, os olhos dos lobos eram rubis e entre os dois tinha outro maior e em forma de sol. A lamina, em que metade estava enterrada no gelo era prateada e cintilava com um brilho fenomenal, parecia acabada de ser forjada por alguém perito na profissão, não tinha um único erro na lamina perfeitamente afiada. Senti o meu coração pulsar mais fortemente ao vê-la ali quieta como se fosse oferecida a mim. Avancei com passos incertos e com um sorriso crescente na cara sem conseguir afastar o pensamento da cabeça. “foi feita para mim”. Quando reparei já tinha a minha mão a agarrar no cabo, sentia-me em transe, como se algo tivesse a tomar conta de mim. Sem muita dificuldade retirei a espada do gelo e erguendo-a sorri ao observar a sua majestosa imponência.

Chamei pela Xana, mas ela não me respondeu, pareceu-me já não estar na sala, no entanto o vento trouxe a sua voz, sedutora e melosa. “Deixa que o destino conduza a tua mão.”

Caminhei para fora da caverna, não sabia quanto tempo se passara desde que a Xana me tinha mantido ali, nem sabia qual era o destino de Kaly e o rapaz dos brings. Saí da caverna com o sol a queimar-me os olhos, temi que a minha estadia ali tivesse sido longa demais, ainda por cima não havia sinal dos dois que me acompanhavam. Suspirei e sentei-me na entrada da caverna com a espada encostada a mim, enquanto tentava habituar-me à luz do sol. Olhei para o céu sarapintado de nuvens escuras e pensei em tudo o que me tinha acontecido. Desde que cheguei de memoria apagada, até ao encontrar a Unga e a minha estadia com os trolls e os eventos que tinham levado a esta demanda forçada. Recordei-me da Unga, da última vez que a vi e da tristeza nos seus olhos e a dor que sentia. Não consegui resistir às sensações e chorei, era injusto causar tanta dor sem razão, porque Urnia não teve nenhuma razão para o fazer, para alem de um louco desejo que eu desconhecia completamente, Yorgsh avisou-me que não era a sua mulher, que era algo que a controlava mas nada disso interessava, eu só a queria ver morta. Senti raiva de mim ao ter esses pensamentos, mas não conseguia controlar-me, só queria ver a Unga de novo a sorrir, sem medo e queria fazer quem lhe fez tanto mal pagar.

Envolta em choro gritei do fundo dos meus pulmões como um uivo que enquanto fui animal nunca o consegui dar. Após esse grito, a tristeza e o medo evaporaram-se. Peguei na espada com convicção e caminhe dali para fora. Mas após começara descer a montanha deparei-me com um pequeno acampamento em que estava Kaly a olhar para mim com ar de espanto e o rapaz, amordaçado, com os braços e as pernas amarrados, pendia de cabeça para baixo num tronco de uma arvore. Eu aproximei-me cuidadosamente, pois reparei que Kaly debatia para entender a minha presença ali. Mordi o lábio inferior com um sorriso tímido e olhos ainda vermelhos do choro, já me tinha visto ao espelho mas não sabia como outras pessoas me veriam e nem esperei que Kaly entendesse mas ela acabou por questionar gaguejando.

- Lobo?

- Sim… quer dizer… não propriamente agora um lobo mas…

- O que é que aconteceu? – Continuou ela, que assava qualquer coisa na fogueira.

- Não sei, simplesmente… adormeci e quando acordei estava assim. – Olhei para o rapaz que olhava para mim com um ar feliz, mesmo pendendo da árvore e com aquelas restrições todas.

- Ah, não ligues a ele. Depois de ter sido mandada para fora da caverna, quando tentei entrar vi que havia uma parede de gelo no caminho. Não consegui escavar por ela, portanto voltei para trás e montei o acampamento. Entretanto essa criatura acordou e não parou com aquele barulho infernal, portanto decidi enfia-lo ali. – Ela tirou o que assava do fogo, que não passava de uma maçã e mordiscou um pouco. – Não te preocupes, cheguei à conclusão que ele não precisa de comer, respirar ou outras necessidades físicas que nós possuímos. Já agora… não tens fome?

Kaly mostrou alguma comida que tinha guardado desde que desapareci e então uma fome aterradora apoderou-se de mim. Comi até me fartar, contando a Kaly todos os detalhes do que aconteceu que ela devorou interessadíssima, enquanto de vez enquanto ia batendo com o pau onde assara a maçã no rapaz. Fiquei a saber que Kaly tinha aquele aspecto estranho pois não era uma criatura normal. Ela tinha morrido e Kandia que era sua amiga, pois ambas eram feiticeiras e tinham-se conhecido à anos nas reuniões de Feitiços & Tuperwares, fez-lhe um ultimo favor. Dar-lhe uma hipótese de vingar. Portanto aquele corpo não era dela, pelo menos só dela, era uma mistura entro o seu corpo e algo que existia para alem deste mundo. Conversa metafísica que a mim não tinha muito interesse, mas gostei de saber um pouco mais sobre a minha companhia.

Mais tarde decidimos voltar para a cabana de Kandia. Após soltarmos o rapaz, mas a pedido de Kaly mantendo-o amordaçado, caminhamos calmamente pela floresta em direcção ao lago, com uma conversa amena. Estava a conseguir afastar todos aqueles sentimentos venenosos da cabeça e a sentir-me satisfeita por isso apesar de não ter durado muito tempo.

O cheiro a queimado já me tinha entrado nas narinas bem antes de chegarmos à clareira. Pensei ser um fogo florestal qualquer, mas nunca esperei ver tal coisa. Quedei-me em silêncio quando observei o espectáculo macabro perante os meus olhos. A casa de Kandia ardia e cá fora três trolls estavam de guarda, observando as chamas mas o pior pormenor, trouxe tudo de volta, engoli a seco quando vislumbrei por cima das suas cabeças, numa das arvores centenárias que preenchiam aquele recanto da floresta, Kandia pendia de olhos fechados e expressão serena com uma corda à volta do pescoço. Eu não gritei, eu não afastei a cara em horror, eu não senti, eu não chorei. No entanto dentro de mim, aquela raiva voraz acordou outra vez. Mordi o lábio inferior e termi até sentir o sabor a sangue. Um dos trolls viu-me e fez sinal aos seus companheiros que se meteram em posições de defesa. Foi a gota de água. Ignorei qualquer tipo de dor e lancei-me para cima de um dos trolls que tentou defender-se com a sua lança. A espada trespassou lança, pele, músculos e osso. O sangue quente salpicou a minha cara e eu não consegui conter uma gargalhada, termia com antecipação do próximo que me atacasse. Assim que o vi a avançar a espada dançou nas minhas mãos e ele acabou cortado em dois. Olhei para o que sobrava com um sorriso vitorioso, a espada termia nas minhas mãos, ela queria mais sangue, eu queria mais sangue. A minha fúria gritava por ele, pedia-o e queria ser saciada. O ultimo troll apavorado largou a sua arma e começou a fugir. Eu cravei a espada no chão e corri em direcção a ele. Sentia-me um animal, pior do que alguma vez me senti enquanto lobo. Rapidamente alcancei o troll e saltei para cima dele, os meus punhos fechados embateram vezes sem conta na sua cara até me sentir satisfeita sem o pôr inconsciente. Levantei-o e abanei-o.

- Quem te enviou? – Ele não respondeu por isso soquei-o outra vez gritando de seguida. – Quem te enviou?

- F.. Foi… a Urnia.

Sorri-lhe com uma raiva a trespassar-me o corpo, mas a vida dele tornou-se insignificante para esta fome, portanto decidi ser criativa. Arrastei-o para perto dos seus companheiros mortos. Decapitei ambos e envolvi a as cabeças num trapo que encontrei por ali. Entreguei-as ao troll e disse-lhe ao ouvido com um sussurro louco.

- Leva-os para a Urnia… diz-lhe que a Skor manda-lhe comprimentos.

Após isso empurrei o troll que se pôs a correr desenfreadamente. Suspirei e assim que ele desapareceu, sem queixume deixei as lágrimas escorrerem. Kaly olhava para mim surpresa e assustada, mas foi algo que decidi ignorar. Kandia precisava de ser honrada.

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