domingo, setembro 14, 2008

Saga da Lua

Guerreira Lobo


Subi até ao ramo de onde Kandia pendia e gentilmente fi-la descer até ao chão onde a Kaly a agarrou suavemente nos seus braços. Enquanto voltei a descer a Kaly removeu a corda em volta do pescoço e abraçou-se a ela com força. Não me pronunciei, eu tinha uma ligação com Kandia, mas não seria tão forte como a que Kaly possuía.
Ela não chorava, só se mantinha de olhos fechados agarrada à amiga, como se tivesse medo que ela a abandonasse. Mas Kandia já tinha partido, e não podia ser feito nada. Fechei os olhos tentando manter-me senhora dos meus sentimentos, não queria voltar a deixar a tristeza ou a raiva tomar conta de mim pois ainda tinha trabalho a ser acabado, a minha mão precisava de se manter firme e para me distrair decidi começar a cavar. Cavei em silêncio com as minhas próprias mãos na terra húmida da floresta. Ainda não tinha reparado, que as minhas mãos não estavam feitas para trabalho, eram pequenas, com dedos delicados e suaves. Parei por um pouco e esfreguei-as tentando entender como tais mãos conseguiam agarrar uma espada colossal como aquela, com tanta firmeza. Abanei a cabeça, afastando os pensamentos que me percorriam a mente e concentrei-me a cavar.

----

Pouco passava da alvorada na aldeia de Yorgsh e a confusão já estava instalada. Um dos guardas de Urnia tinha voltado de uma missão incutida pela sua líder, o único sobrevivente de uma equipa de três.
Desde a estranha partida do lobo, as coisas tinham mudado nessa aldeia. Urnia tinha tomado controlo do povoado e criado uma guarda privada, sob o pretexto que Yorgsh estava demasiado afectado pelos últimos acontecimentos, precisando de repouso e que a aldeia já não estava segura, precisando de treinar melhor os seus jovens Trolls nas artes de guerra. Apesar de um pouco descontentes com a mudança repentina, os habitantes da aldeia não questionavam a sua líder e os acontecimentos desta madrugada apenas reforçavam a ideia de Urnia.
A líder estava perto da entrada com uma pequena multidão. O seu guarda encontrava-se com os joelhos no chão e aos seus pés as cabeças decepadas dos seus dois companheiros. Ele termia compulsivamente e um burburinho crescia na população assustada e horrorizada. Urnia olhava para as duas cabeças sem vida com uma mão sobre a boca, com os olhos abertos em choque.

- O que se passou? – Questionou ela. – Quem fez isso?

- O seu nome é Skor. – Disse o Guarda tremendo.

- Skor? Como é que aquele lobo podia ter feito isso?

O guarda saltou com essas palavras e com os olhos repletos de terror continuou.

- Não era um lobo! Era um demónio! Matou Lancio e Tarvo com um golpe cada um. Eles nem tiveram tempo de responder. – O guarda abraçou-se a si próprio e olhou para o chão tremendo. – Era um demónio branco, erguia-se nas pernas como nós, tinha a pele branca como a neve, os seus olhos eram grandes, azuis, gelados como o pior dos invernos e a sua forma é uma mentira, ilude-nos de fraqueza mas na realidade possui uma força monstruosa! Não podemos fazer nada! Estamos condenados.

Urnia fechou os olhos, ao ouvir a população preocupada e amedrontada. As coisas não estavam a correr bem, este novo perigo era inesperado. Ao livrar-se do lobo ela pensou que poderia descansar sem perigos mas com este novo aparecimento ela encontrava-se numa situação que não saberia lidar. Calmamente ela juntou alento e dirigiu-se ao sou povo com palavras de coragem. Pediu coragem e esperança, lembrou que o seu povo tinha passado por vários desafios e tinha-os conquistado todos e a história repetir-se-ia. Convocou mais guerreiros, mais Trolls para a guarda da aldeia e prometeu que o mal que assombrava a aldeia seria banido de uma vez por todas. Essa última promessa significava o fim de Unga.
-----

As chamas amansaram e a campa estava feita. Ergui-me e esfreguei a testa, limpado o suor. Estava cansada e devia estar cheia de terra, começava a achar os meus cabelos grandes demais pois muitas vezes se meteram á minha frente e as suas pontas estavam todas sujas da terra. Sai do buraco que tinha escavado e olhei de volta para a Kaly. Ela olhava para mim com um sorriso triste e com os braços ainda envolvendo Kandia. Levantou-se e carregou a Kandia até a campa improvisada criada por mim, onde a deitou. Ajoelhou-se e começou a emitir um estranho gemido parecido com um riso.

- Sabes o que é a coisa mais frustrante disto tudo? – Questionou ela. – Eu estou triste, uma grande amiga morreu. No entanto não consigo chorar, simplesmente não consigo.

Coloquei-lhe a mão no ombro. Como conforto, mas não tinha palavras para dizer, eu estava tão desolada, mas ao menos já tinha deixado a minha raiva e tristeza sair, ao contrário de Kaly que não conseguia soltar os seus sentimentos. Enterramos juntas a Kandia enquanto que o rapaz do “bring” permanecia estático sem fazer qualquer som. Lentamente Kandia foi coberta de terra. Kaly fez um pequeno e crude arranjo de flores que colocou em cima da sua campa sorriu como despedida e depois levantou-se.

- Eu vou partir. – Avisou-me ela.

- Vais?

- Sim. Eu prometi-lhe ajudar-te e assim o fiz. Agora tenho de seguir o meu caminho.

- Eu entendo. – Respondi-lhe sentido o pesar e tristeza na sua voz.

- Mas foi bom conhecer-te. Para alem do mais, se não te tivesse conhecido nunca me teria despedido dela.

Mantive-me em silêncio com um sorriso complacente. Continuava a não conseguir dizer nada, não tinha força para tal e nada do que pudesse dizer traria Kandia de volta.

- Promete-me só uma coisa. – Continuou ela com um ar mais sério.

- O que é?

- Vinga-la.

- A minha missão levar-me-á por esse caminho Kaly, não precisas de te preocupar com isso.

Sem trocarmos mais alguma palavra a Kaly abandonou o local. Sem ela eu perdi o controlo e cai de joelhos. Levei as mãos ao chão com medo de perder o meu equilíbrio. Tinha um sorriso estampado na cara mas o meu interior estava praticamente o inverso. A Kandia estava morta e eu não conseguia parar de pensar que a culpa teria sido minha. Grizaldo e Brot também estavam perdidos e era tudo minha culpa, tanto sofrimento e eu não entendia porquê. Não entendia nada, não me lembrava de nada, a minha única personalidade era aquela que Unga me tinha dado no momento em que nos encontramos, eu não era ninguém! Respirei fundo e gemi por entre dentes cerrados. Não estava certo, nada disto, toda a gente tinha uma opinião, toda a gente tinha um objectivo e eu era simplesmente puxada de um lado para o outro ao desejo de qualquer outra pessoa. Respirei fundo outra vez. A tristeza transformou-se rapidamente em desespero e o desespero em raiva.
Levantei-me abruptamente. Desloquei-me até à árvore mais próxima e com um grito enfurecido comecei a esmurrei-a violentamente até sentir a minha pele a romper. Ofegante e com as mãos a pingar sangue não resisti em dar uma cabeçada violenta contra a arvore berrando terrivelmente.

- Unga… – suspirei

Lembrei-me outra vez do seu rosto. Era por ela que eu fazia isto, não podia desesperar, não enquanto ela estivesse a sofrer. Ela era a minha razão, fazia isto por ela e não me importava quem me manipulava pelo caminho, desde que conseguisse fazer com que ela ficasse bem.
Encostei-me à árvore e respirei fundo. Olhei em frente para a clareira que já me acolhera três vezes. Não o podia negar, muito mudou desde que entrei neste mundo, apesar de parecer ter passado um curto espaço de tempo e nada tinha sido bom. Olhei para a minha espada cravada no chão, ainda não tocar nela desde que enterramos a Kandia, por um lado tinha medo de lhe voltar a tocar, a raiva e fúria que sentia quando a tinha na minha mão era um monstro terrível dentro de mim, no entanto, precisava dela para cumprir a minha missão e não podia esconder que a achava irresistível, como se cantasse um chamamento sinistro sobre mim.
Lembrei-me que não estava sozinha, olhei para o rapaz que Kandia tinha criado para me acompanhar. Ele continuava estático a olhar para o nada, com um olhar vidrado, sem qualquer emoção, sinal de pensamento ou vida.

- Hey!

Tentei chama-lo à atenção. Passava-se claramente algo de errado com ele, nem o seu som característico fazia. Aproximei-me dele lentamente tentando comunicar com ele, mas sem sucesso, até que quando lhe toquei ele desfez-se em pó. Dei um salto para trás e deixei escapar um pequeno grito de susto, não foi algo que estava à espera.

- Chegaste… – Falou uma voz que provinha por deras de mim.

O conjunto de eventos tinha me deixado assustadiça, portanto ao ouvir a vós dei outro salto e outro pequeno grito virando-me rapidamente para trás. Ao olhar para quem falava comigo cai no chão com os olhos esbugalhados. Perante mim estava o que parecia ser uma forma espectral de Kandia. Ela olhava com uma expressão severa, mas não tive medo, para alem do choque que recebera, a sua presença dava-me alento.

- Tu sabes o que tens de fazer. – Disse-me com um sorrizo.

- Kandia, tu… - Gaguejei, não conseguindo acabar a frase.

- Sim, estou morta. O meu pequeno golem carregava um resto da minha força vital e é por isso que estamos a ter esta conversa. – Ela fechou os olhos e fez um movimento como se inspirasse antes de declamar. – Apesar do meu corpo já não se suster, a minha curiosidade necessita de ser saciada. Descobriste o que querias?

- Não, acabei por ficar com mais questões. – Pronunciei-me por entre gaguejos. – E como sabes quem eu sou?

- Sempre soube Skor, mesmo quando não passavas de um lobo eu vi o teu destino. O que é traçado nas estrelas nunca conseguirei desvendar, mas o que foi escrito eu consigo ler. Tu és o ser que veio limpar o antigo mal das nossas terras. – Ela fez um breve silencio antes de prosseguir. Eu continuava mortificada no chão. – Confidenciei com Urnia o que descobri nas minhas conjurações. Foi um grande erro. O tempo passou e ela foi ficando mais hostil, tentou manipular o futuro para seu próprio proveito. Especialmente quanto eu mencionei que para o bem de todos iriam ser feitos sacrifícios. Os filhos foram os dela e for ai que se mostrou realmente que fazia parte dela o nosso grande mal. E agora ela planeia acabar com a vida da sua única descendente, coitada, não por sua vontade mas pela escuridão que tomou conta dela agarrando-se à sua angústia. Tu sabes o que tens de fazer. Vai.

- Obrigado Kandia. – Disse, não sabendo porque razão agradecia, mas sentindo mais apaziguada. – Obrigado por tudo.

Levantei-me e peguei na minha espada. Sorri para Kandia, ela respondeu-me também com um sorriso e a sua essência desvaneceu no ar. Sozinha na clareira, observei a lâmina com um sorriso na cara, a minha mente estava calma e aliviada. Só restava fazer uma coisa.

Confiante e convicta, corri pela floresta com uma velocidade estonteante. Só pensava em chegar à aldeia e acabar isto, não parei por nada nem ninguém. Lentamente, as árvores começaram a ficar menos densas até que finalmente sai da floresta perante mim estava a aldeia dos trolls, movimentada para algum ritual que estava a decorrer. A guarda estava reforçada desde a última vez que estive aqui. Mas nada disso tirou-me o ânimo. Levantei a minha espada bem alto acima da minha cabeça e gritei como nunca antes gritei. Um grito de vitória bem antes da batalha começar. A aldeia estremeceu. Não estavam prontos para a fúria que estava prestes a vir.

0 comentários: