segunda-feira, novembro 17, 2008

Olhos dos Espíritos

Dois anos passaram-se desde que o Jotun foi banido da aldeia dos Trolls. Em honra daqueles que morreram, vítimas das mentiras e das ilusões de Urnia, a aldeia recebeu o nome de Kandia, em honra da xamã e irmã do chefe da tribo que foi morta pela vontade de Urnia. Skor tornou-se uma heroína aclamada pela tribo, apesar do seu aspecto invulgar em relação aos trolls, eles acolheram-na como uma deles. A historia da guerreira de pele branca e cabelos dourados percorreu as terras do norte, acabando nas bocas de todas e as mais estranhas criaturas que o habitavam. Desde os pele-verde no sul que admiravam a sua bravura em combate, aos centauros nas vastas planícies a Este, para alem da montanha da lua que respeitavam a coragem e altruísmo que ela demonstrou a cumprir a sua missão.
O tempo foi passando mas a historia nunca desapareceu. Tanto o louvor por Skor como o medo do Jotun. O espectro que se ergueu de Urnia não fora avistado por todos, mas eles sentiram, tanto ódio e mal nunca passariam despercebidos. A aldeia evitava falar daquele sentimento de desespero e o frio que passou pelos seus corpos quando o Jotun esvoaçou pela a aldeia num grito de fúria e desespero. Algo que com o tempo acabou por ficar escondido na memoria de todos, mas iria manter-se sempre lá.
Após esses eventos a aldeia retomou a sua rotina. Enterraram-se filhos que outrora tiveram pais, agora eram conhecidos como os filhos de Urnia. Foi um evento triste, mas muitos deram graças aos deuses por ainda estarem vivos e de terem a oportunidade de se redimirem. Esses trabalharam arduamente para o bem-estar e reconstrução de Kandia e para a limpeza dos próprios nomes.
O cheiro a terra molhada e lavrada invadia o povoado, nas estações frias. O povo tinha adoptado a agricultura e alguns animais já tinham sido domados, a caça começava a tornava-se secundaria para a alimentação do povo, uma parede começou a ser erguida em torno das habitações e graças ao elevado comercio e assim a aldeia tornava-se cada vez mais um local fixo.
Com o passar do tempo a aldeia prosperou mais que qualquer outro aglomerado de trolls na região, varias famílias de outras aldeias foram atraídas pelo esplendor que Kandia começava a tomar e assim a aldeia cresceu, mas o tempo também trouxe os seus malefícios
Yorgsh cedeu ao peso da idade e pareceu durante o sono. Apesar de uma morte tranquila e em tempos de paz a lamuria que percorreu o povo foi incessante, era um adorado líder e por muitas bocas afirmado que era ele mantinha a tribo unida. Após este trágico acidente, Unga, sua única descendente viva assumiu o posto de líder e guia da tribo e fez o melhor para que conseguisse seguir as pisadas do seu pai. Rapidamente todos puderam comprovar que era o sangue de Yorgsh que lhe corria nas veias, tendo decisões ponderadas e benevolentes tentando tirar a maior satisfação para toda a gente pelas escolhas que tomava. Também demonstrou que não só saíra a seu pai, como à sua descendência e linhagem, a forte linhagem de magia presente na família Yorgsh e que se julgava extinta com a morte de Kandia, reavivou com todo o seu fulgor em Unga, que cada vez se tornava mais adulta, bela e sábia.
Skor por outro lado, não reagiu bem à morte do adorado líder, embrenhou-se na ajuda de Gan na com uma obsessão doentia na esperança de apaziguar a dor da perda. Nesse tempo forjou lâminas de beleza extrema e de qualidade que rivalizava o experiente Gan, mas todas elas possuíam uma aura de uma tristeza imensa. Nenhum troll poderia empunhar uma delas sem ser consumido pela pesada recordação dos acontecimentos que as tinham criado, devido a esse facto Skor apressava-se a guardar cada arma que fazia rapidamente debaixo de mantas para nunca mais olhar para elas. Tinha perdido um amigo, um conselheiro, um aliado, mas mais importante, alguém que se assemelhava a um pai. Na sua vida privada de memórias, o pouco que tinha eram aqueles à sua volta e quando um findava, o seu mundo ruía mais um pouco.

Um suave bater à porta quebrou o silêncio que a noite tinha trazido. Era tarde e Jorin temia que estivesse a acordar Skor, mas a sua preocupação e já um certo afecto que nutria pela guerreira faziam-na guardar coragem para enfrenta-la. Depois da morte de Yorgsh, Jorin raramente tinha ouvido a voz de Skor e Unga embrenhada nos seus afazeres não conseguia arranjar tempo para atender à sua amiga. A situação estava tensa e a jovem cega temia por Skor, pois podia não ver o que se passava, mas sentia tudo com uma afinidade imensa e desde que aquele fatídico acontecimento tinha assolado Kandia que ela sentia um negrume em volta de Skor mais negra do que a sua cegueira lhe causava.
A troll não teve resposta, portanto voltou a bater à porta. Novamente obtendo nenhuma resposta decidiu entrar sem permissão não seria a teimosia da guerreira que a faria parar. Skor estava sentada na cama olhando para o espelho apenas de calças e com um trapo a apertar-lhe o peito. Os seus cabelos pendiam em frente da sua cara, que tinha coberta por uma fuligem negra, apenas descortinada pelo incessante riu de lágrimas que escorria dos seus olhos. Ignorante da sua condição física, Jorin só conseguia ver uma aura negra e púrpura a formar-se em volta da forma de Skor e isso chegava para a afligir. Caminhou até ao lado de Skor e sentou-se ao seu lado envolvendo-a ternamente com um braço. Skor não negou o contacto mas também não pareceu confortar-se com ele, continuava apenas a fixar o seu reflexo no espelho. Jorin tentou ganhar alento para começar a proferir palavras de conforto mas foi Skor quem começou num tom desprovido de emoções.

- O que se passa comigo? – Jorin forçou Skor a encara-la, apesar dos seus olhos estarem cegos precisava de ter a certeza que Skor a ouvia.
- Algo que esperava que tu me dizias, mas não pode estar assim. A morte acontece, e é algo que devia ser chorado, sim, mas não devia fazer alguém quedar em desespero.
- E o devo eu fazer? Eu já me bravei contra a morte e trouxe morte a muitos, mas não me consigo conformar, aos poucos e poucos sinto tudo a desabar e ninguém irá levantar-me dos escombros.
- Não sejas tola! – Asseverou Jorin num tom muito pouco próprio dela. – Toda a aldeia gosta de ti, muitos consideram-te uma heroína e querem seguir os teus passos... muitos outros te amam como família, não digas coisas tão ridículas.
– Mas não são a minha famil-

Uma chapada forte cortou as palavras a Skor. Por uma fracção de segundos que pareceu longas horas Jorin continuou com a mão estendida após a estalada enquanto Skor permanecia imóvel, observando o nada e remoendo a dor e o remorso com uma expressão de choque. E outra vez antes que Jorin pudesse proferir alguma palavra Skor apressou-se a pedir-lhe perdão.

- Desculpa! Desculpa, eu não queria... vocês são tudo para mim... eu não sei o qu-

Jorin quase se desfazia em lágrimas quando desta vez cortou as palavras de Skor com um abraço pesado que lançou ambas contra a cama.
– Porque é que não vieste falar comigo antes? – Questionou Skor perplexa e finalmente confortada nos braços de Jorin.
- Porque tu és forte. Tu és a guerreira. Não sou eu, tu devias ter vencido isto! – Choramingou Jorin estreitando-se com força ao pescoço de Skor.
- Eu posso ser isso tudo... Mas tu acabaste de me vencer. – Finalizou fechando os olhos e entregando-se ao conforto do momento.

O sol raiou com um esplendor novo, pelo menos aos olhos de Skor. A pequena Jorin ainda dormia quando a guerreira afastou-se sorrateiramente do seu, agora débil, abraço. Colocou-lhe uma manta por cima com medo que ela passasse frio e beijou-lhe a face com um carinho fraternal antes se cobrir com um simples vestido e sair do quarto. A aldeia ainda despertava, com poucos trolls fora de suas casas. Pouco a pouco Skor foi percorrendo a aldeia dando os bons dias a todos os aqueles que lhe apareciam pela frente, muitos deles demonstrando uma felicidade tremenda em ver a jovem humana restabelecida. Skor conseguiu esquecer as tristezas e incertezas que lhe atormentaram a mente, até se riu um pouco ao lembrar-se do que tinha passado e o quanto se sentia ridícula. A sua família estava aqui era esta aldeia e não havia como negar, só faltava uma última coisa, para se sentir completa e era voltar a ver Unga. Ao chegar à porta da casa da agora líder de Kandia, mesmo antes de poder bater aporta foi assaltada violentamente por Esperança, que outrora não passava de uma cachorra, agora era uma loba enorme e forte. Quase derrubando Skor com o salto, a loba ao ser amparada pelos braços de Skor começou a lamber-lhe freneticamente a cara extasiada por ter a sua amiga de brincadeiras de volta aquela casa. Esperança tinha sido encontrada por caçadores, abandonada e a mercê dos elementos no meio da floresta ainda com poucas semanas de vida e foi carregada para a aldeia onde Unga decidiu a adoptar imediatamente. Skor ficou fascinada pela pequena loba e assistiu de perto à recuperação e crescimento da criatura, alimentando-a várias vezes quando mais ninguém se conseguia aproximar dela. Talvez fosse por já ter sido uma criatura como ela, mas havia uma ligação entre os dois seres que ninguém podia negar. Apesar de mesmo com essa ligação, a loba não se dignava a largar o lado de Unga o que ainda deixava Skor mais feliz.
Não satisfeita com as festas e outros mimos que Skor lhe dava, Esperança saiu do seu abraço e no chão de cauda a abanar começou a ladrar alegremente, como se puxasse a companheira para a brincadeira. Skor limitou-se a dar-lhe uma pequena palmada amigável no focinho e respondeu-lhe como se ela entendesse a linguagem humana.

- Agora não amiga, mais tarde vamos correr as duas por esta aldeia fora.

A cadela-lobo latiu mais uma vez e resignou-se de volta de onde tinha visto. Já nessa altura a porta da casa estava aberta e Unga olhava para Skor com um sorriso imenso por ver a sua amiga ali presente passado as atribulações que tinham surgido, o olhar cristalino de Skor mirou a troll com um sorriso tímido. Unga tinha crescido, já não tinha o ar infantil de outrora, estava mais madura e isso observava-se nos traços da sua cara. Tinha um olhar mais seguro a face parecia que tinha esticado, os seus cabelos ruivos continuavam com o mesmo esplendor, lisos e fortes deslizavam sobre os ombros envolta dos espinhos que deles saiam e caíam até à cintura. Tinha crescido e estava bem maior que Skor, que via a sua descendência de uma raça bem inferior em estatura em relação aos trolls. Mas o no seu olhar ainda era encontrada a doçura de outrora, aquela simpatia e amabilidade únicas que fez Skor enveredar pelo caminho que a levou a este momento.
Unga fechou os olhos e com a voz pejada de um carinho que sempre existiu entre estas duas criaturas comentou:

- Se eu não conhecesse a tua história, até estranhava a relação entre ti e essa loba.
- Não acredito que a Esperança sinta o cheiro do que eu uma vez fui. – Gracejou Skor.
- É bom ver-te outra vez.
- Agradece à Jorin. E é bom ver-te também... – respondeu Skor rapidamente, ficando de seguida em silencio como se envergonhada pelo que se tinha passado. – Desculpa, eu fui uma idiota.
- Não digas isso. – Respondeu Unga demonstrando uma voz saudosa. – Foi duro para todos nós.

Houve outra vez um pequeno silêncio entre as duas, não interrompendo o sorriso que trocavam até que Unga continuou.

- Eu tenho andado cheia de trabalho, seguir as passadas do meu pai não é coisa fácil. – Disse rindo-se para tentar desanuviar o tema. – Eu não tinha a noção do que era o seu trabalho.
- Ele surpreendeu-nos a todos. – O sorriso continuava estampado nas duas caras, mas o tema começava a pesar um pouco portanto Skor tentou evitar. – Desculpa não ter sido prestável nestes últimos dias, agora queria redimir-me.
- Não procures isso Skor, tu sabes que foste entendida, o povo adora-te e não esquece o que aconteceu. Ninguém te julga. Para alem do mais os rapazes estão ansiosos que tu voltes a dar-lhes lições. – Unga ergueu os braços numa ovação exagerada para tentar alegrar o espírito ainda não completamente sarado da sua amiga. – Serem treinados pela grande guerreira loba, a heroína do povo.

Skor gargalhou sonoramente e corou. Era verdade que os jovens, especialmente aqueles que ansiavam por uma oportunidade de servir como guardas quase a reverenciavam apesar de tudo o que se tinha passado. Apesar das vidas que ela tinha tirado, ainda era olhada como uma heroína. Era algo que ela não conseguia acreditar.

- É bom ouvir-te a rir. Vem, entra e vamos falar mais um bocado. Antes que comecem a acordar as minhas dores de cabeça.
- Não Unga. Agradeço, mas terá de ficar para outra altura Negou Skor respeitosamente. – Ainda tenho de dar umas voltas e ajudar alguma coisa em casa.
- Eu entendo amiga. – Unga levou o dedo aos lábios olhando para o céu num ara pensativo. – Diz-me só uma coisa, o que pretendes fazer aquelas armas que criaste?
– Não sei... nem lhes dei muita atenção depois de as criar.
– Então se não te importares gostaria de oferece-las como um presente aos pele-verde. – O olhar de Skor estreitou-se tentando entender a razão para tal coisa, mas rapidamente a troll explicou-se. – Eles são um povo bélico e prezam uma arma poderosa e bela acima de tudo, acho que aquelas armas trariam uma grande melhoria nas nossas relações se lhes fossem presenteadas. Sem esquecer que se mencionar por quem foram forjadas ainda mais valor terão.

Skor corou outra vez. Julgava que todos lhe davam crédito em demasia pelo que tinha feito. Apesar de a verdade ser que estas criaturas do sul tinham grande apresso pelo espírito guerreiro da “loba de guerra”, como a chamavam.

- Skor! É um prazer ver-te a sorrir outra vez. – Gritou Yarhan ao passar por perto, era um jovem pastor que tinha partilhado alguns momentos de calma com a guerreira.
- Desculpa-me Unga, mas tenho de ir. – Afirmou Skor enquanto saudava o troll.
- Eu sei e eu já ocupei demasiado do teu tempo.

As duas amigas despediram-se e separaram-se, voltando Unga para casa e Skor acompanhando o pastor pelo resto do caminho. Estes dois embrenharam-se em conversa enquanto orientavam o rebanho de cabras de Yarhan para os prados de relva a sul de Kandia.
Com a aldeia quase fora de vista a visão era magnifica, o céu limpo estendia-se eternamente com o sol dourado a brilhar num esplendor equiparável, os prados verdes sarapintados por flores amarelas e vermelhas onde as varias criaturas encontravam o seu banquete era apenas cortado pelo o rio de agua cristalina que cortava a planície em duas. Poucas árvores eram encontradas nestes prados, mas o suficiente para as duas criaturas encontrarem uma sombra onde descansarem e darem liberdade à conversa. Muitas vezes falavam sobre o que lhes rodeava, sobre as terras que Skor ainda não conhecia ou sobre a aventura que fascinava tanto Yarhan, sobre a Montanha da Lua e as quatro enigmáticas irmãs, tentando ajudar-se um ao outro a compreender um pouco mais do mundo. Em muitas coisas podiam discordar mas numa coisa o consenso era o mesmo, eram momentos bem passados em calma.
A manha já estava perto do fim quando foi avistada uma comoção ao fundo do horizonte, não passava de uma coluna de fumo na estrada até que se começou a ouvir o soar de tambores e enquanto Skor observava interrogada tentando discernir o que se aproximava, Yarhan já se encontrava com um brilho nos olhos em antecipação do que avizinhava.

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