terça-feira, julho 06, 2004

A odisseia da Aspirina: uma história simbólica

Era uma vez uma Aspirina com ambições extraordinárias.
Ao contrário de todas as outras aspirinas, esta ambicionava sair da sua humilde caixa de genérico, passar para além das fronteiras do armário, e saber o que existe para lá dos portões da casa-de-banho-universal, guardados por extraordinárias e legendárias criaturas: um gigante frasco de Tantum Vermelho com dois gargalos e o seu mítico braço-direito, um Pepsamar de três cabeças. Contudo, a Aspirina não acreditava na existência de nenhuma dessas criaturas, chamava-as inclusivamente de fantasias, histórias para meter medo aos filhotes dos paracetamóis quando estes queriam ficar acordados até mais tarde, na véspera de um dia de escola.

Quando atingiu a maioridade, a Aspirina comunicou à sua família aquilo que aspirava realizar, a qual recebeu a notícia com alguma inquietude. Acharam inclusivamente que algo se passava com a embalagem da Aspirina, mas esta assegurou-os de que estava tudo bem. Porém, não conseguiu a autorização dos seus pais para realizar tal projecto, que inclusivamente a proibiram de sair da caixa após o jantar para se divertir com os seus amigos.
Certo dia, devido a um desacato entre os líderes das duas religiões dominantes no armário dos medicamentos, uma guerra irrompeu entre a prateleira do topo e a da base, vitimando quatro medicamentos civis logo no primeiro dia de hostilidades. Entre esses quatro, estavam a tia de Aspirina, que era meretriz, e o seu marido, que era canalizador. Gravemente ferido ficou o seu filho, um Aspegic comprometido desde nascença a casar-se com a sua prima Aspirina.
Quando soube da notícia, Aspirina correu a estimular Aspegic, que se encontrava em baixo e ameaçou suicidar-se rasgando o seu invólucro. Tanto estímulo fez com que ambos ficassem mais próximos e, uma semana depois, Aspirina perdeu a virgindade.

Mais vítimas sucederam-se. A guerra não parecia ter fim. A cada dia que passava, o perigo tornava-se num companheiro mais frequente entre os moradores do armário. Os pais de Aspirina começavam então a aceitar a ideia da sua filhinha aventurar-se no desconhecido, pois não se antevia um melhor futuro para ela, dentro do armário.
Por fim, após uma interminável hora de infindáveis súplicas aos seus pais, estes acabaram por ceder, autorizando-a a fazer o que bem entendesse da sua vida. E ela assim fez. Combinou com o seu noivo, e, no dia seguinte, bem cedo, partiriam à aventura, rumo ao desconhecido.

O grande dia chegou após uma noite mal dormida. Estava tudo preparado, desde os mantimentos até aos instrumentos de escuteiro de Aspirina. Uma longa despedida dos pais teve lugar mesmo no meio da prateleira, perante o olhar intriguista de um grupo de calmantes. Mãe e filha choravam. “Havemos de regressar”, assegurou-lhe Aspirina. “Até onde estão dispostos a ir?”, perguntou a mãe. Aspirina piscou-lhe o olho e respondeu: “Só pararemos quando deixarmos de acreditar em nós, mãe.”. A mãe sorriu, “Que Deus vos ajude.”, disse. E separaram-se finalmente.

Aspegic e Aspirina encaminhavam-se na direcção da prateleira da base. Lá encontrariam um fio dental e usariam-no para descer o armário, após forçar a abertura da sua enorme porta, para o que necessitariam da ajuda de uma forte caixa de Kompensan, que serviu de alavanca.
Tudo correu conforme planeado e a porta abriu-se. Aos olhos da Aspirina, o sol no tecto da casa-de-banho parecia brilhar mais intensamente e os mosaicos no chão pareciam mais belos que nunca. Aspirina começou a descer pelo fio dental, seguida de Aspegic.

Iam a meio do caminho quando ouviram uma explosão vinda do armário, à qual se seguiram pavorosos gritos. Conseguiam sentir dentro de si o que se passava no armário, e como consequência disso o fio oscilava de um lado para o outro, fazendo-os acelerar a sua descida. Ouviu-se outra explosão, e outra ainda. A última, na prateleira da base, fez cair a caixa de fio dental e foi então que o pior aconteceu. A caixa de fio dental foi projectada para a outra ponta da casa-de-banho, levando atrás de si os dois medicamentos, acabando por cair dentro da sanita aberta, juntamente com Aspirina e Aspegic. Aspegic afogava-se, incapacitado de respirar por dentro do seu invólucro. O invólucro genérico de Aspirina não se aguentou na água e rasgou-se numa macabra mistura de um espectáculo efervescente com os seus medonhos gritos desesperados. Aspegic desistira de resistir e estava agora a ir direito ao fundo da sanita enquanto Aspirina lutava contra a sua dissolução na água, acabando por dissolver-se mais rapidamente. Até que, por instantes, deixou de acreditar na sua hipótese de sobreviver e parou de lutar.

Perdera a noção do tempo e espaço, sentia-se agora muito leve, capaz de voar. Tomava consciência do que se passara, mas não conseguia raciocinar. Tentou abrir os olhos, mas não via senão uma enorme luz branca diante de si. Tudo era claro, mas nada fazia sentido. Encontrava-se entre a vida e a morte, e deixou-se ir. Se pensam que a odisseia de Aspirina terminara ali, estão muito enganados. A sua grande viagem só agora começara...

NZL

P.S.: Se isto não chegar para provar que eu não ando bem, fica aqui escrito que eu hoje sonhei com a pita cor-de-rosa...
P.P.S.: Mas não, não envolvia nada obsceno.
P.P.P.S.: Para além disso, tinha de estragar um post mais ou menos.. interessante.. com uma coisa estúpida que não lembra a ninguém..

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