domingo, dezembro 26, 2004

Dia de Natal no Hospício

A noite da consoada correu bem e não há nada de especial a contar sobre ela. Trocámos umas quantas prendas entre as pessoas com quem nos damos melhor. Eu recebi dois lápis de cera, um azul e outro vermelho do Simon, um amigo meu imaginário, mas senti-me mal por não lhe ter comprado nada. Recebi também uma gilete nova num envelope enviada por uma pessoa que vocês conhecem muito bem. Na carta vinha escrito que era do Stuart. Ele admitiu que só se tinha feito de morto naquela noite no meu castelo para ter a oportunidade de comer a médica legista Lucília que, segundo ele, é "podre de boa!". O pobre coitado não teve muita sorte pois tinha lhe calhado um homem para lhe fazer a autopsia. Lá teve que fugir do hospital.

O dia de Natal foi mais movimentado. Pela manhã obrigaram-nos a correr numa pista na Sobreda. Foi cómico ver o Guido, mais conhecido por Emplastro, a tentar engatar uma mulher com os seus 70 anos acompanhada por uma amiga. Ao início a senhora ficou divertida ao poder falar com alguém tão famoso quanto o Guido. Mas depois, ao aperceber-se das suas segundas intenções, aplicou-lhe uma valente joelhada na sua masculinidade, que o pôs k.o. de imediato.

À tarde tive explicação de matemática no hospício. Costumo estar sentado ao lado de um judeu. Por azar, ao lado direito da mesa atrás da nossa, costumam se sentar dois neo-nazis que muito embirram com o judeu e pedem constantemente à professora para lhe darem apenas um tirinho na perna, só para o assustar. É realmente chato ver constantemente passarem disparos de raspão pelas minhas orelhas quando a professora se vira para o quadro. Tal como dizia, nesta tarde ficaram na mesa atrás o Perito e o seu amigo João. Como de costume eles começaram com a sua brincadeira favorita: tocar no braço de alguém e depois fingirem que não foram eles. Eles tanto fizeram isso a um dos neo-nazis, que ele passou-se e apontou-lhes a metralhadora que costuma deixar em cima da mesa:
Neo-Nazi 1: Raios ta partam!!
Neo-Nazi 2 (puxando o braço do amigo): Pára, Godofredo! Não vês que eles são arianos?
Neo-Nazi 1: Arghhhh!!
Pereira, o judeu que se senta ao meu lado, tirou o fio com a estrela de Davi que costuma trazer sempre ao pescoço e atirou-o para a carteira do Perito e do amigo. Eu, como quem não quer a coisa, virei me para trás e disse de modo aos nazis ouvirem:
Lunático: Olha, olha! Vocês têm aqui uma estrela de Davi. Não me digam que são JUDEUS?
Escusado será dizer que o João foi logo alvejado, pois era o que estava mais perto da carteira dos nazis. A stôra ao aperceber-se disso, mandou o responsável mudar de lugar.
Neo-nazi 2 (advertindo o colega): Para a próxima usa o silenciador, idiota.

Perto da noite recebemos a triste notícia que o João tinha recuperado e ia sobreviver. Todos perdemos a fome com esta novidade. Até os enfermeiros pareciam estar tristes só de pensarem que mais tarde ou mais cedo teríamos o irritante João a chatear-nos de novo. Ninguém teve vontade de jantar. Mas afinal era Natal e lá nos animámos. Fomos então ver para a sala os Batatetes. O pessoal muito se riu com aquilo, o que me fez pensar que deviam ser as únicas pessoas do país a fazer tal coisa. Depois vimos o Homem-Aranha sem a companhia do clube de tarados pela Michelle, pois eles foram obrigados a sair. Nunca se sabe o que eles poderiam fazer ao monitor ao ver a cor do cabelo da Mary Jane, portanto os enfermeiros decidiram não arriscar. Depois de acabar fui chamado para ir falar com o Dr. Clemêncio.

Conversa com o Doutor Clemêncio

Dr.: E então como vai a caminhada, Soares?

Lunático: Não sei se consigo chegar ao fim deste túnel. A entrada ficou muito para trás. Sinto que é impossível voltar atrás e sair por ela. Mesmo que conseguisse não queria sair por aquele lado. Eu quero chegar ao seu fim. Quero sair pela saída a sul.

Dr.: Segundo o que soube parece haver uma saída a norte. É verdade?

Lunático: Duvido que possa sair mesmo por aí. Mas, se pudesse, jamais o faria. Não é esse caminho que busco.

Dr.: Então quer sair pela saída a sul.

Lunático: Sim.

Dr.: Mas porquê? Não há melhores alternativas?

Lunático: Até poderá haver… Sabe eu não acredito no destino… Mas este caminho… É para o sul que parece que nasci para ir…

Dr.: Está finalmente a admitir que quer fazer essa caminhada?

Lunático: Sim, estou. A caminhada começa hoje. Levará o seu tempo. Poderei até nem encontrar a saída nunca na minha vida, mas é ela que busco, é ela que quero!

Dr.: Levará o seu tempo? Como assim?

Lunático: Eu sinto-me como um lego. Algumas partes do meu "eu" já estão juntas e definidas, mas ainda faltam peças. Não me sinto preparado para atravessar a saída hoje, se tal coisa me fosse permitida. Primeiro tenho de me "construir".

Dr.: Há mais alguém que também vá pelo caminho a sul?

Lunático: Há, houve e haverá sempre. Mesmo que certas pessoas não queriam entrar pelo túnel, são colocadas lá. A pelo menos uma foi dada uma lanterna e uma mota para sair mais facilmente. Talvez saiam primeiro do que eu… Talvez eu até nem vá sair nunca… Aprisionado no túnel por minha própria conta… É irónico dizer que só cá cheguei ao orientar outros para aqui. E depois o modo como as coisas acontecem faz-me pensar que se trata de algo sobrenatural.

Dr.: Hmm, ok. Mas porque é que não grita à gruta o que quer? Porque não lhe diz?

Lunático: A gruta não me ajudará. Antes pensei que estava a ser empurrado por ela, mas depois houve um intervalo. Um espaço de tempo que me adormeceu e retardou a minha caminhada. Depois desse intervalo acabar, agora, tenho cada vez mais certezas que será cada vez mais difícil sair por ali.
Sabe… os filmes fazem me mal. Magoam-me… Fazem me sentir humano e lembram-me do que busco, do que sinto. Eu até chego a encontrar semelhanças nalguns casos.

Dr.: Continue…

Lunático: Sinto-me tão fraco… As pernas doem-me só de pensar na caminhada que irei fazer. Às vezes pergunto-me se vale a pena fazê-lo. É apenas mais uma saída e esta caverna tem tantas. E também há a pergunta: "Depois de sair o que irá acontecer?". Depois de me sentir com forças para retomar a caminhada, mas em sentido contrário, ou seja sair por onde entrei, algo força-me a não desistir. Talvez o meu estúpido orgulho, orgulho esse que muitos poucos sabem da sua existência, que me faz pensar que só os fracos é que desistem. O mesmo orgulho força-me a não pedir ajuda à gruta em si. Não quero apanhar uma desilusão e prefiro lutar sozinho para a conseguir.

Dr.: Então porque não luta mesmo com tudo o que pode?

Lunático: Por enquanto não há nada que me ajude nesse sentido. Por outro lado há o problema com a minha identidade. Há malucos para tudo. Uns sentem-se múltiplos, outros nem "unum" se sentem. Faltam-me partes essenciais, partes para poder ser "eu". Faltam sonhos por concretizar. Sem eles jamais me aventurarei a atravessar a saída. Sem eles não conseguirei lutar para sair.

Dr.: Mas tem a certeza que não prefere experimentar o caminho a norte? Esse parece me mais fiável e a gruta até o ajudaria se quisesse ir nesse sentido, pelo que me consta.

Lunático: Duvido que ajudasse, mas isso também não interessa. O que interessa é que não quero ir por aí. Sabe, sinto-me como se tivesse num barco que anda à deriva num rio que acaba numa catarata. Eu quero me salvar, mas tenho medo de usar o remo, pois ele pode se partir com a força da corrente…

Dr.: Se não usar o remo irá cair na catarata e acabar-se-á tudo.

Lunático: Mas se ele se partir sei depois que tudo estará perdido. Como me irei consolar ao saber que tudo estaria acabado? Como?

Dr.: Tem de arriscar… Ou então mude de barco.

Lunático: Não há outro barco! E nem quero que haja! Algo me diz que irei cair pela catarata e morrer afogado neste imenso rio.

Dr.: Não exagere! Bem, falamos para a semana e pense bem. Se não arriscar não se salvará do rio.

E lá acabámos o diálogo. Como sempre, mal saí do gabinete, senti-me um pouco pior do que antes. Fora de brincadeiras, eu começo mesmo a achar que tenho problemas mentais.

Ass.: Lunático

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