quinta-feira, março 23, 2006

A Visita ao Pandemónio - Capítulos 1 e 2

Those who dream by day are cognizant of many things
which escape those who dream only by night.


Edgar Allan Poe





Prólogo

Inútil é a realidade enquanto vivida por um sonho esquecido.

Com este pensamento em mente acordei para um dia que mudaria a minha vida. A tempestade da véspera dissipara-se com a luz emanada por um céu límpido que, infinitamente sereno, me observava de longe como a um estranho, inesperadamente saído de casa em direcção a lado nenhum.

Continuei o meu caminho erróneo durante alguns minutos. À minha volta, até o mais pequeno indício de vida parecia ter uma vontade sua, adquirindo por isso uma dimensão inatingível a partir do meu limitado alcance humano. A natureza elevava-se gloriosa e sublime perante mim, contrastando com a obscuridade do espírito que me possuía.

Por breves momentos parei. Parei para observar este mundo bizarro e constrangedor. Seria eu parte de um teatro ancestral? Seríamos todos nós, os autómatos de algo superior que nos controla a partir da escuridão? Ou, talvez, personagens de um livro épico, cujo autor morreu antes de a obra finalizar?

Ignorei as respostas, esqueci as perguntas.

O caminho acabou por me levar a um centro comercial quase deserto.





Capítulo 1

Abordagem do Frequente Sonho Fugidio

No interior do centro comercial, as lojas estavam decoradas para uma festa qualquer que eu desconhecia. Ouvia-se o ressoar de um barulho de discoteca que atravessava as paredes e as fazia tremer num ritmo monótono e incessante.

Passei por uma papelaria onde estavam expostas diversas revistas com as mesmas pessoas nas capas. Numa delas, era possível ler, em letras garrafais, a lista que caracterizava uma dessas figuras: “Maltratada e violada em criança, apaixonada e casada com um marginal, presa durante dois anos, dedicou-se à prostituição, tentou suicidar-se por diversas vezes, mas acabou por se tornar uma diva do jet set francês”. Não consegui entender por que razão se estava ela a candidatar a um concurso estúpido quando, com um conjunto de feitos como aquele, podia concorrer directamente a presidente da república.

No balcão dessa mesma papelaria encontrava-se uma mulher ruiva, o seu rosto mergulhado numa escuridão intangível. Dei comigo a pensar que o mundo dela que eu criara em mim subsistia somente enquanto eu existisse. Era um mundo isolado que ela desconhecia apesar de ser centrado nela. Apercebi-me finalmente que esse mundo era tão real quanto a sua presença ilusória a dois metros de mim.

Nesse instante, ela saiu de trás do balcão, avançou na minha direcção e, sem parar, atravessou-me como a um fantasma. Olhei para trás, porém não a vi a ela, mas a uma figura encapuzada que chocou violentamente contra mim e me projectou disparado na direcção do balcão, deixando-me inconsciente durante o tempo suficiente para me poder roubar.

Fui acordado por uma escultural presença feminina a meu lado. Ela usava um longo vestido preto que lhe descobria os ombros, o seu cabelo negro era curto e ondulado e os seus olhos brilhavam uma profunda escuridão impenetrável. O seu sorriso audaz assinava o seu nome no ar, e foi através dele que a reconheci, apesar de nunca a ter visto pessoalmente.

– Anne! – exclamei eu perplexo enquanto me levantava.

– Não estava à espera que me reconhecesses. – disse ela, com a sua voz suave e melódica carregada de um sensual sotaque francês.

– Mas... tu existes?

– Convém... afinal de contas, foste tu próprio que me criaste.

– É verdade. És bem mais agradável pessoalmente do que naquele livro que comecei e...

– E nunca acabaste! – interrompeu ela ferozmente.

– Bem, uma vez que existes realmente, dou-te autorização para tu própria o acabares.

– Lamento, mas vou ter de recusar a proposta: tenho assuntos pessoais a atender. E tu próprio também deves ter.

– E tenho mesmo. Por acaso não viste o...

– O ladrão? Vi sim. Ele fugiu para o andar de cima. Ainda tentei ir atrás dele, mas estes sapatos de salto alto não foram feitos para correr.

– Muito obrigado. Vou andando então. Gostei de te... “conhecer”.

– Sim, eu também. – E uma sensação de déjà vu fez-me estremecer no momento em que ela terminou de pronunciar as palavras: – Toma cuidado.






Capítulo 2

O Delirante Vestígio de um Acordar Momentâneo


Saí da papelaria e olhei para cima.

Devido à existência de uma frondosa árvore, plantada uns quantos metros à minha frente, tinham deixado uma larga abertura nos pisos acima. Através dessa abertura, pela qual podiam passar pelo menos trinta árvores daquelas, pude observar o sítio onde me encontrava.

O edifício do centro comercial era invulgarmente alto, devendo possuir seis ou sete andares, assumindo que eu me encontrava no nível térreo. Cada andar, por sua vez, tinha altura suficiente para albergar um avião transportador de passageiros, ou um bonsai gigante.

Comecei a procurar uma escadaria rolante por onde pudesse subir ao primeiro andar, mas encontrei primeiro um elevador, por isso chamei-o e, passados apenas alguns segundos, as portas abriram-se, convidando-me para entrar.

Entrei no elevador e, olhando para o painel de botões, verifiquei que o centro comercial possuía onze andares, estando três deles abaixo do chão e seis acima, os outros dois eram o piso térreo e um piso assinalado como sendo secreto.

Sem saber bem onde deveria carregar, pressionei no primeiro andar. As portas fecharam-se e o elevador começou a subir.

Por que será que puseram um sinal luminoso a apontar para este botão, se este andar supostamente é secreto?

– Boa pergunta! O sinal é meu e eu próprio não sei!

– Quem disse isso? – perguntei eu.

– Uma voz vinda do nada. – respondeu a voz vinda do nada.

Ok, estou a imaginar coisas. O melhor é ignorar.

– Isso! Ignora-me como toda a gente faz! – e a voz começou a soluçar – Toda a gente me pisa todos os dias e ninguém me agradece no final.

– O quê? És a carpete? – perguntei eu, levantando um pé e olhando para o sítio onde ele se encontrava antes.

– Achas? Eu sou o elevador! A carpete? Também não estou assim tão mal!

– Hey! – protestou a carpete.

– Tu também falas? – estranhei eu.

– Aqui toda a gente fala – respondeu a carpete – mas eu tenho de pagar ao elevador para falar, para além da taxa mensal do arrendamento desta co-propriedade.

– Isso é tirania. – obstei.

– Aí é que te enganas! Mas permite-me que me apresente: o meu nome é... – fez uma pausa para exprimir o seu orgulho – Zacarias! E sou o elevador mais rápido deste centro comercial. Consigo fritar três hambúrgueres em apenas quatro minutos! Consumo menos electricidade que um vaivém espacial e consigo adivinhar o pensamento de todos os ocupantes.

– Ah sim? Em que é que estou a pensar agora?

– Estás a pensar em "quem não deves".. ou seja na.......

– sim........?

– ........ Raios! O meu modelo é o WV174. Só a partir do modelo WV274 é que foi incluída a capacidade de desafiar narradores.

– Isso é uma desculpa muito fraca e um chavão da literatura nonsense.

– Mas é verdade, vê lá tu que o meu primo é um WV274 e consegue fritar quatro hambúrgueres, quatro ovos estrelados e uma lata de oito salsichas em apenas três minutos e meio. Uma vez, ele ameaçou um narrador de morte se ele não o metesse numa história de um tal de Louco e o gajo acabou por metê-lo mesmo! Ele actualmente está em full-time num restaurante do Feijó. Ganha mais que eu, o estupor.

– Pronto, ok.. convenceste-me.

– Bem, a partir deste local, a tarifa muda e passas a pagar mais. – disse o Zacarias ao fim de alguns minutos de silêncio.

– Pagar? Mas eu só queria ir para o primeiro andar. Já para não falar que está a demorar demais para um suposto elevador super-rápido.

– Eu nunca disse que era rápido a transportar pessoas. Eu sou rápido a cozinhar. Queres que te faça uma omoleta? Tenho aqui uma nova frigideira antiaderente de marca Teka que é uma maravilha!! Embora para eu a poder utilizar tens de pagar a taxa de aluguer do urinol. Ela é muito esquisita em relação aos sítios onde se alivia.

O número no mostrador mudou de “0,999999999” para “1” e as portas começaram a abrir-se vagarosamente.

– Não, não quero uma omoleta. – disse eu, preparando-me para sair – Até logo. Desculpa lá, mas eu pago-te noutra altura. Roubaram-me a carteira e tenho de ir à procura dela.

– Ah! Então foste tu o roubado!

– Como assim, “fui eu”?

– Eu tinha acabado de trazer para aqui uma pessoa e li-lhe no pensamento que ele tinha roubado uma carteira.

– Sabes para onde foi ele?

– Só te digo se prometeres que me fazes um favor.

– Prometo. – disse eu sem intenções de cumprir a promessa – Diz lá.

– Então pronto, o ladrão foi para a farmácia. Quanto ao...

– Ok! Tchau aí então.

– Espera! E o favor? – perguntou o Zacarias, começando a chorar – Tu prometeste! *sniff*!

– Diz lá depressa que eu tenho mais que fazer.

– Podias-me trazer comprimidos para a garganta? – pediu ele, parando de chorar instantaneamente.

– .......o quê?!

– Comprimidos para a garganta, se fazes favor.

– Pronto, ok.. eu trago.. – maldito elevador! pensei, quando comecei a sair.

– Hey! Eu ouvi isso! – gritou o elevador.

– Parece mal fazeres de conta que lês o pensamento dos outros. – repreendeu a carpete timidamente.

– Estás-me a desafiar Vítor Matias?

– Eu, eu... – gaguejou a carpete.

– Ai estás? Então hoje ficas sem jantar, só por causa de uma coisa! E é bem feita porque eu estava a pensar em fazer lasanha!

– Mas eu paguei pela semana toda...

– Não quero saber!

– Porra, vê-se logo que estás com a menstruação...

A discussão entre uma carpete esfomeada e um elevador monopolista continuou atrás das duas portas de metal, que se fecharam atrás de mim em silêncio.


NZL

Edit 1: Apesar de todos os planos que tinha para esta história há dois anos atrás, altura em que a comecei a escrever, não sei se farei a continuação num futuro próximo, ou se farei de todo.
Edit 2: Esta não é a última versão do texto. Algumas partes não têm o nível de qualidade mínimo que eu considero aceitável. Eu editarei o post caso encontre a última versão.
Edit 3: Odeio este post.
Edit 4: Odeio este post.
Edit 5: Odeio este post.
Edit 6: Este post é a demo version do verdadeiro post que virá um dia que o sol não nasça. Stay tunned.

PS: Link para os capítulos 3 e 4.

3 comentários:

Vargtid disse...

Tu odeias, mas há pessoas que acham genial, a primeira parte foi completamente esquesita, a segunda foi esquesita e cómica, mesmo assim não sei qual foi a vertente que gostei mais.

Epah... só mesmo uma menina para odiar uma coisa destas porra, vai mas é vestir a saia e continuar com isto porque isto promente muito!

xrhdkj

Lunático disse...

Então era este o tal post que há coisa de um ano dizias que ias tentar publicar num Halloween!

Eu ao ínicio pensei que ia ler uma história subliminarmente pessoal e cheia de reflexões, mas o segundo capítulo surpreendentemente tornou-se numa verdadeira "fábrica de gargalhadas".

Eu sei que disseste que ignorarias comentários encorajadores, mas sinceramente acho que devias continuar esta história. Todos os leitores do Imperialium (que sem contar contigo, devem ser só dois: eu e o Midd-Varg) agradecíamos-te!

Bom post!

Nerzhul disse...

"Então era este o tal post que há coisa de um ano dizias que ias tentar publicar num Halloween!"

Por acaso este é uma espécie de sequela desse post que referiste. Inclusivamente, algumas personagens desse entram/"vão entrar" neste também.


Se um dia eu ficar sem imaginação para outras histórias, acabarei esta. E se essa imaginação não voltar, lanço o anterior depois, como "prequela".



"vai mas é vestir a saia e continuar com isto"

Só se vestires tu o top e continuares com o Imperialium 60k9. Combinado?