segunda-feira, novembro 01, 2004

A melancolia de uma Lágrima

Os primeiros raios de sol eclodiram no horizonte, pintando momentaneamente o céu de tons escarlate e manchando as dispersas, mas extensas nuvens de cor-de-rosa, recriando uma deslumbrante tela fútil e silenciosa, somente comparável à fugacidade da beleza na vida.
Instantes depois, o Sol elevou-se na sua carruagem a partir de um canto do céu, apagando de forma arrogante as demais estrelas de uma só vez, cessando num ápice aquele espectáculo de tons exóticos que minutos antes criara.

Ela acordou num dia igual ao anterior, e igual ao anterior a esse.
Sem se levantar da cama, fitou o índigo céu através da pálida janela do seu quarto e deteve-se por instantes a contemplar o vácuo, comparando o vazio azul do céu à futilidade do mundo que a rodeava e a preenchia contra a sua vontade.
Deixou-se ficar deitada, reflectindo e propondo-se a fazer alterações nesse seu mundo, criando mentalmente um inventário com todas as promessas feitas a si própria, promessas que, de uma forma ou outra, acabariam por permanecer frivolamente congeladas, devido ao seu diletantismo desapaixonado. Dos seus olhos escorriam as lágrimas filhas de um quotidiano insípido. E o céu chorava com ela.
Meditava especialmente sobre a sua vida e sobre o quotidiano que se esforçava para rejeitar. Guardava dentro de si a única cópia da figura perfeita na qual se desejava ter tornado. Havia já algum tempo, essa imagem esbatida adivinhava-se num capricho irreverente do destino, ou talvez a prova de que um forte desejo nesta vida infrutífera se revela invariavelmente numa enorme desilusão.

Os segundos transformavam-se em minutos. Os minutos em horas.
Ao fim de várias horas, um relâmpago dividiu o céu em dois, libertando-a com um abanão do seu transe hipnótico, fazendo-a despertar de um sonho real.
Vagarosamente, secou as lágrimas e decidiu-se a levantar, mas antes de começar a fazê-lo, sentiu um aperto no peito, transformando-se num ardor semelhante ao veneno paralisante da mais mortal serpente, expandindo-se lentamente ao resto do corpo. Enquanto os seus membros se transformavam em pedra, os seus olhos imóveis, porém apavorados, fitavam o céu, local onde os anjos se abrigavam em espessas nuvens taciturnas. Rezou para si uma oração. O granizo agredia ferozmente a janela, como se o negro céu tentasse ingloriamente impedir o que estava a acontecer.
Ali ficou, completamente petrificada, sentindo-se só, fria e infeliz como sempre esteve, durante meses, talvez anos e assim permanecia, qual Bela Adormecida desumanamente consciente, à espera de um longínquo príncipe, provavelmente inexistente. Certo dia, uma voz enigmática começou-lhe a sussurrar aos ouvidos, contando-lhe histórias tão extraordinárias quanto os sonhos de uma criança.
Durante esses transcendentais monólogos, o seu olhar mostrava a mesma insatisfação de sempre, agora acrescida de um cansaço de quem queria terminar com tudo, mas estava cruelmente impossibilitada de o fazer.
Dia após dia, essa estranha voz nos seus ouvidos esclarecia-lhe os mistérios do Universo, demonstrando cuidadosamente teorias fantásticas sobre a vida e a morte, segredos pelos quais a humanidade pode apenas suspirar.
A altura chegou em que ela deixou de entender o que lhe era dito. As palavras, apesar de claramente pronunciadas eram ininteligíveis, comparando-se a estranhos símbolos indistintos, oriundos de uma língua há muito extinta. Toda a sabedoria dimanada de um ser omnisciente estava-se a perder, e a consciência, outrora única bóia que lhe permitia flutuar, estava a desaparecer rapidamente na escuridão do oceano. Ela sabia que o fim estava próximo.

Cinco anos depois daquela nefasta manhã, a mesma voz que lhe sussurrara durante quase todo esse tempo chamava-a de longe para se juntar a ela no abismo, numa oferta condescendente que ela sabia irrecusável. Enquanto um arco-íris aparecia tenuemente no céu, expirou de forma tímida a derradeira exalação de desgosto e a sua última lágrima imergiu juntamente consigo no vazio, onde permaneceu… só, fria e infeliz para toda a eternidade.


Neoclipse

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