segunda-feira, agosto 02, 2004

“Preferia fazer um ponto de matemática todos os dias…”

Aqui está, tal como prometi, o relatório (pouco) exacto das férias passadas em Travancinha de São Tomé. Uma palavra basta para descrever estas duas longas semanas: tédio!

Diário
O diário que se segue foi feito secretamente no meu quarto, todas as noites antes de me deitar. Alguns excertos, tal como constatarão, são produtos da minha elevada imaginação, mas as partes verídicas em cada dia são facilmente distinguidas.

Dia 1
A viagem de ida, parte mais divertida e emocionante de todas as férias, foi, ao contrário das minhas especulações, calma e segura. Para quem está habituado a ver o meu pai conduzir deveria esperar umas derrapagens, umas hesitações a meio da auto-estrada, um pneu furado, umas ultrapassagens desnecessárias e perigosas na IP: 3.255.255.255. Mas até essa estrada tinha de ter as faixas separadas. Não se faz! E eu que queria ver um pouco de acção…
Dentro da viagem, o mais importante a destacar foi a minúcia do meu progenitor a abrir/ fechar o vidro. Dava um ligeiro toque no botão para fechar, mas, como ficava 3 mm mais aberta que a sua vontade, carregava mais uma vez, ficando 4 mm mais fechada. Depois tinha de dar mais um toque para baixo, ficando 1 mm mais aberta do que ele queria. Aposto que teve mais tempo a “ajeitar” a janela do que com atenção à estrada!
Quando chegámos, deduzimos que, dois anos depois, o interior de uma casa fechada pode ser confundido com uma lixeira. Neste dia aborrecido de limpezas e trabalho, destaca-se o corte de uma videira com… um berbequim. Chegou a uma altura em que a serra giratória (disco) prendeu no tronco forte e resistente da videira. A partir daí tivemos que puxar. Eu e o meu pai estávamos a puxar para as nossas costas, ou seja, se a árvore caísse de repente, poderíamos cair e levar com o enorme tronco em cima. E foi exactamente o que aconteceu! Depois de um esforço maior, e já com a ajuda da minha mãe, que empurrava enquanto nós puxávamos, a árvore cedeu surpreendentemente fazendo tombar a mim e ao meu progenitor, caindo a videira em cima deste. Felizmente, ninguém se aleijou.
Pouco depois, averiguei que se tivesse de fugir do espírito maligno do antigo dono da casa pelo portão lateral, o qual está sempre trancado à chave, podia não conseguir escapar e ser capturado por este, que me obrigaria a fazer um jogo de damas com ele, o que é aborrecido. Ah, claro… E assustador também. “Mas porque é que ele não conseguiria fugir por esse tal portão?”, perguntam vocês. A resposta é a seguinte, meus caros: a fechadura está “janada”. Resumindo e concluindo, abrindo o portão com a chave, mesmo que se dê as voltas necessárias o trinco pode não abrir por completo. Só tentando mais vezes, e com alguma sorte, é que se consegue abrir aquela fechadura com sucesso. Portanto, fugas por aquele portão são difíceis de se concretizar, a menos que não esteja trancado ou se se saltar o muro. Se o “Porritas” me aparece naquela zona já sei que vou ter uma “jogatana” de damas.
Quanto à aldeia, modificou ligeiramente. Finalmente vê-se sexo feminino de idade entre os 15/ 18 anos, o que é bom. Também se vê carros equipados e motas maiores e mais barulhentas. Porém, os merdosos bailes com música popular da rasca (existe música popular sem ser rasca?) onde a melodia e a “batida” são sempre iguais, distinguindo-se as músicas quando eles param ou porque a letra do refrão muda, continua em voga nas festas aos “Santos”. Eu, sinceramente, tenho horror a este tipo de festas e nem me aventurei a entrar nela, pois, além disso, estava exausto.

Dia 2
Fomos a Ceia pela manhã, a cidade mais próxima de Travancinha de São Tomé. Passámos por uma loja dos 300 que cheirava distintamente a remédio para desinfectar cães. Também passámos pela Gota Azeda, aquele super-mercado conhecido pelas promoções. Pois bem, tirando a Joana da Caixa, aquilo está uma bosta. E só de pensar que já lá vi venderem cd’s do MM. Outros tempos… Agora nem cd’s vendem! Algo me diz que se está alguém a ler isto neste momento, deve-se estar a questionar sobre quem será a Joana da Caixa. Acho que uma palavra basta: hormonas.
Durante a noite, destaca-se uma história que a minha mãe me contou sobre um tal de Lisinho que não lavava os pés. E então, o seguinte diálogo sucedia-se vulgarmente:
Pessoa qualquer: “Oh, sr. Lisinho, então os seus pés estão sujos?
Lisinho: “É do calçado…”
A visita de um primo direito da minha progenitora teve a sua importância. Iniciámos uma discussão política sobre o estado de coisas actual. O tal homem admitiu ser do TS, depois de ter sido do TSD. A minha mãe, sabendo que a sua terra era governada pelo TSD tendo mudado há pouco para o TS, apercebeu-se a que devia a sua mudança de partido e disse ironicamente: “És um vira-casacas. É conforme te convém, não é? És como o feijão-frade, tens duas caras!”
Às vezes de ter esta frieza e dizer o que penso.

Dia 3
Um dia onde se fez limpezas pela manhã. Na hora da “siesta”, como de costume, mantive-me acordado mas, só que desta vez, fiz algum proveito a essas poucas horas de descanso: comecei a ler um livro realmente interessante de nome “Atlântida, Civilização Sumida”. Em breve, publicarei uma crítica a algumas teses defendidas nesta obra sobre “o continente desaparecido”.
À noite, depois de jantar, fomos visitar os tios da minha mãe (que a mim são considerados tios avós). Tios esses que têm uma alcunha caricata: Corujas. Contudo, ainda não descobri o motivo desta alcunha, pois os seus nomes são Tonio e Valiosa Figueiras. Talvez descubra, antes de me ir embora, a origem deste estranho nome atribuído a pessoas que nada têm a ver com a famosa ave nocturna.

Dia 4
Um dia tirado a papel químico do anterior: limpezas, ler, ouvir música, depois do jantar sair mas, só que desta vez, foi à casa dos Lãs Brancas, outra alcunha cuja origem me transcende. Cá para mim, estes nomes são provas que a Civilização Atlante desembarcou em Travancinha, em 1230 a.C. Tenho cá um pressentimento… Qualquer dia, dou por aí uma volta a ver se encontro um zigurate ou uma pirâmide (construções que, segundo o tal livro, são de origem Atlante).

Dia 5
De volta a Ceia, pelas nove/ dez horas da manhã, o meu pai mostrou que estava de novo “em boa forma” ao volante: deu três voltas seguidas na mesma rotunda, tudo devido a uma indecisão se havíamos de ir primeiro à Gota Azeda ou ao centro da cidade. As três voltas foram seguidas pelo olhar atento e desconfiado de dois oficiais da Pê Jota que tinham estacionado a sua viatura para comerem uns bolos redondos que têm um furo no meio, cujo nome não me recordo.
Na Gota Azeda, estava a Joana da Caixa mais uma vez. Não que eu considere o facto de ela lá estar nesse dia também perseguição. Longe disso! Mas aquela pele branca, aqueles cabelos castanhos compridos cujas franjas tapam parte da face, dando um aspecto misterioso à mesma, aquele corpo magro mas de contornos perfeitos, todas estas características não enganam ninguém! Ela tem qualquer coisa de Atlante! Eu ainda lhe perguntei se ela tinha nascida num berço de oricalco num zigurate perto de Travancinha de São Tomé, mas ela deve ter percebido alguma coisa mal, pois chamou de imediato dois seguranças e os ordenou para me porem fora do super-mercado. Enfim, acho que ela como Atlante, ainda não deve entender bem algumas palavras em Português.

Dia 6
Acabei de ler o livro sobre a Atlântida. Depois da “siesta” (que nunca é aproveitada por mim para dormir) o meu progenitor lembrou-se de pôr óleo nas dobradiças e fechaduras das portas mesmo estas não precisando. Plano inteligente, pois, se alguém tentar assaltar a nossa casa com uma chave duplicada (ou algo do género), depois de abrir a fechadura irá, porventura, pensar que a porta está perra e dar-lhe-á um encontrão. A porta, que, devido à aplicação de óleo fino, se encontra mais fácil de se mover, abre repentinamente devido à força efectuada pelo safanão do assaltante, o que fará um efeito de ricochete, indo ela novamente se fechar, dando, com certeza, uma cacetada no ladrão pondo-o K.O. (ou não…). Tal plano, tão superiormente imaginado e tão criativo, faz me pensar que o meu próprio pai seja Atlante. E é bem possível, pois ele tem cabelo castanho claro, quase louro, e olhos verdes, características arianas. Para quem não sabe, segundo Espanuff, os atlantes foram a primeira “raça ariana” na história. Espanuff afirmava também que a Atlântida se situava a norte da Europa, que os escaravelhos egípcios comiam saladas de fruta no Algarve, que o pardal migrava para a Ásia depois de ter passado pelo Brasil para beber uns Guarananás, que a civilização Maia tinha por hábito comprar tecnologia em Tóquio e que (mais descabido de tudo) o Ex-Durão Baboso não é gay.

Dia 7
Por volta do meio-dia começa-se a ouvir um barulho invulgar no frigorífico. Segundos depois, vê-se um clarão e ouve-se um mini estrondo. A minha mãe, que assistiu a isto tudo, só teve tempo de tirar a ficha da tomada. Depois de nos relatar o que se sucedeu, eu disse em voz alta:
– Eu bem me parecia que o doce de framboesa nunca se ia dar bem no mesmo sítio que o queijo da serra!
Os meus progenitores ficaram atónitos com esta observação.
– Bem, deve ter sido o motor… – disse o meu pai, tentando ignorar o que eu anteriormente dissera.
– Lá estão vocês a ignorar as minhas especulações – disse eu, enervado – Pai, eu sei que é atlante, superior, mais inteligente, de uma raça ariana que irá constituir o 3º Reich e que tens direito a uma chávena de café a mais que a gente, mas… (pausa pseudo-intelectual) Mas… É do conhecimento geral que as embalagens de doce de framboesa explodem os frigoríficos quando neles se encontram, também, queijos produzidos na Serra da Estrela.
O meu pai elevou o tom de voz e mudou de assunto.
– Andas a tomar anfetaminas de novo?
Porém, respondi calmamente:
– Três anteontem. Mas porque ‘tá a desconversar, hein? Sabe que eu tenho razão, né?
– Elena, telefona já ao hospital. Diz lhes que temos aqui um jovem que precisa de uma lavagem ao estômago.
– Pronto, calma! ‘Tava só a brincar. Não temei droga nenhuma! E sim, o frigorífico janou por culpa do motor… Claro!
Nesta parte senti-me como um Galileu da actualidade ao ter de refutar a verdade para salvar a pele.

Dia 8
Uma semana depois, apercebi-me que atraio crianças, pois quando os meus primos de 3º ou 4º grau vêem aqui, a casa, parece que só me vêm a mim. Dass! Porque é que raio eu não causo uma empatia semelhante nas mulheres?!
Mudando vertiginosamente de assunto, o meu pai é realmente um gajo de outro continente! Durante uns 40 minutos teve a pedir a um primo da minha mãe (mas só que este é adulto) para posicionar melhor a antena. 40 minutos a ouvir ““Dá mais um jeitinho para lá…” “Mais um cheirinho” “Oi!” “É muito” “Já teve melhor. Ora puxa mais para cá” “Um nadinha para lá” “Então, ontem no jogo do Bem Fica sempre houve pancadaria?”“ há de ser chato!
Mas, realmente, mais chato é não termos ainda frigorífico. Vamos ver se amanhã, segunda-feira, vem cá um técnico ver disto. Só quero é ver a cara dos meus progenitores quando ele confirmar que compota não se dá com lacticínios! Eh!

Dia 9
Depois do almoço fomos a S. Fogão, uma vila, algo desenvolvida, próxima da aldeia onde nos situamos. Tivemos à procura de uma boa loja de electrodomésticos, pois não havia a certeza de o técnico que passou por casa de manhã concertar o frigorífico antes de “darmos à soleta”. Fui eu até que dei a ideia aos meus pais, pois não confiei nele assim que o vi! Bem, para dizer a verdade só o achei “digno de desconfiança” depois de ele ter se rido perante a minha teoria sobre a explosão do electrodoméstico. Ora, técnico que desconhece a “incompatibilidade destrutiva” entre compotas e lacticínios, ou é amador, ou não é técnico coisíssima nenhuma!
Em S. Fogão, depois de o meu pai ter estacionado o carro para esperarmos por um primo (nestas terrinhas tropeça-se em primos) chegasse do trabalho para nos indicar uma boa loja por ali. Enquanto estava a “ouvir fones” (oops!, expressão do Abutre) olhei pela janela do carro, a meu lado, e reparei num individuo dentro de um carro de bombeiros a sorrir para mim. Devido à expressão do dito cujo, pensei em fazer-lhe o Gesto Universal, que consiste em levantar um determinado dedo, deixando os outros fechados. O dedo que se levanta, neste gesto tão conhecido, não é o polegar, nem o indicador, nem o mindinho e muito menos o que está entre o “dedo do meio” e o mindinho… Mas, penso que fiz o mais correcto, ou seja, ignorei-o.
Depois de um bom pedaço, regressámos a casa de mãos a abanar, mas não por muito tempo, pois, o técnico trouxe de volta o frigorífico já arranjado. O meu progenitor, inteligentemente, aproveitou o facto de ter um homem que percebesse de novas tecnologias e essas tralhas todas e mandou-o ao telhado para ver se podia fazer alguma coisa à antena. O homenzinho, mal chegou lá acima, reparou de imediato que uns fios estavam trocados. Isto para grande desgosto do meu pai, pois quereria, com certeza, que o homem tivesse lá quase uma hora a “puxar um nadinha para cá”, “empurrar um pouco para lá” etc.

Dia 10
Fomos à Serra da Estrela pela manhã. O mais incrível na Serra é a Torre, pois é um dos sítios com mais fama, isto por ser o ponto mais alto em todo o País (Portugal Continental). Depois de paisagens belas de deixar qualquer um de boca aberta, chegámos à dita cuja, que na realidade é uma decepção, pois não passa de uma zona plana onde nem sequer dá para ver bem a paisagem.
De qualquer maneira, tirámos tantas fotos que um senhor já com uma certa idade se aproximou de nós e disse: “Chop sui, tsu, suchi, saber onde ser casa de banho?”

Dia 11
De manhã fomos procurar uma planta que, segundo alguém, faz bem a uma certa doença. Pelo caminho, encontrámos uma outra prima da minha mãe. A senhora, que aparentava ter uma elevada idade, era bastante simpática e amável. Deu-nos um saco de feijão verde, ofereceu-nos almoço, deu-nos bastantes bolos feitos por ela, deu as chaves do carro do filho ao meu pai, ofereceu à minha mãe o seu cartão multi-banco, contou-lhe o código e deu-me a mão da filha mais nova dela, a qual foi cortada com aquelas lâminas de cortar fiambre nos super-mercados. É que, segundo ela, deus dava-lhe mais coisas quando ela oferecia o que tinha aos outros. Espero que não lhe aconteça o mesmo que aconteceu ao Vale Azedo. Este, pelo que conta, fez e deu tudo ao Bem Fica, mas o “pobre coitado” anda só metido em sarilhos agora, devido à sua “dedicação” pelo clube!

Dia 12
Um dia onde nada de novo e de realmente relevante aconteceu. Puro quotidiano travassense: acordar, tomar banho, vestir, escovar os dentes, caçar ratos voadores, almoçar, matar ursos invasores e bebedores de lixívia com café e duas bolas de naftalina, lanchar, telefonar ao meu gang para saber se já mataram o chefe dos brasileiros que exportam e importam carabinas, ouvir Eicidici Live e ao mesmo tempo alimentar a minha pantera negra de estimação cujo nome é “Fosquinhas”, amordaçar ucranianas e fazer-lhes coisas más, jantar, dar uma volta para fazer a digestão, passar pelo canto escuro junto da “Casa do Professor” (que mais parece uma casa assombrada) e bater no chão com o pé três vezes para aparecer a Rita lá da terra, pedir à Rita o “serviço do costume”, pagar à Rita, voltar a casa, matar a aranha gigante que se encontra no quarto a comer o lençol, deitar e dormir.

Dia 13
Ligeiramente diferente do dia anterior: em vez de ser uma aranha gigante a comer o lençol era uma centopeia enorme a escarafunchar o tecto, que é de madeira.

Dia 14
Dia das despedidas. Um dia caracterizado por muitos sentimentos fortes envolvidos: saudades antecipadas de umas férias decepcionantes e chatas, tristeza imensa e incontrolável, dor ao nos separarmos por mais um ano dos nossos familiares distantes que não nos fazem falta nenhuma, depressão ao não ter podido “pagar todos os favores” que “devemos” por nos abrirem as janelas da casa de mês a mês e nem se limitarem a limpar uma teia de aranha, alegria por podermos ficar mais um dia em terra tão pouco acolhedora. Um dia triste, sem dúvida, onde a única coisa que nos alegrou foi o sentido de humor daquela gente:
– Desculpe, minha senhora, o seu marido está?
– Não. Foi ‘o prado aos tomates…
– Ah, peço desculpa, não sabia. As melhoras.
Quanta depressão me invade o espírito, quanta dor e sofrimento sinto, quão triste estou por deixar aldeia tão recheada de inúmeras coisas boas, como por exemplo… por exemplo… aquela coisa de aspecto cúbico, verde com tons de azul amarelado nos vértices, cor-de-rosa nas arestas, castanho-escuro nas faces, trinta e três patas, setenta e seis olhos, seis ferrões, quatro asas, cinco bocas e vinte e nove pestanas em cada perna, que ao todo tinha dezasseis. Sim, vou até ter saudades dessa… cena… (/me chora desenfreadamente).
Ok, quem é que eu estou a tentar enganar? Fdx! Estou livre desta bosta de aldeia! Livre!! Mais um dia e adeus ar puro, adeus paisagens geniais, adeus noites amenas passadas na varanda a encher o papo de amendoins, adeus céu nocturno limpo onde são visíveis todas as constelações existentes melhor que em qualquer outro sítio onde estive, adeus cultura adquirida perante uma civilização desenvolvida a partir dos Atlantes! Adeus Travancinha de São Tomé! E não, não vou sentir saudades! Jamais!

Dia 15
Dia da viagem de volta, dia da chegada, dia do reencontro com tecnologia prejudicial à vista e à audição. Enfim, um óptimo dia!

Ass.: Stupid Son of Sam

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